A beleza dos dias normais

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Por Paula Sacchetta
Atualização:

Californiano de São Francisco, David Alan Harvey comprou sua primeira câmera, uma Leica usada, aos 11 anos, com dinheiro ganho entregando jornal. Aos 12 começou a fotografar a família e os vizinhos, quando viram que ele tinha jeito pra coisa. Aos 20 fotografou uma família negra na Virgínia e as fotos viraram o livro Tell it Like This, em 1966. Hoje com 70 anos e membro da agência de fotojornalismo Magnum desde 1997, divide-se entre trabalhos para a revista National Geographic, workshops pelo mundo e, principalmente, aulas para jovens fotógrafos em seu apartamento em Nova York. Neste ano, foi grande atração do festival Paraty em Foco, que se encerra neste domingo.

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Falando de sua casa de praia em Outerbanks, Carolina do Norte, ele se definiu: “Sou um maluco feliz. Minha vida como fotógrafo se tornou maior e melhor que meu sonho de menino”. Um exemplo é a revista digital Burn, que criou em 2008 e funciona como imensa plataforma de lançamento de novos talentos da fotografia. Em 2012 publicou um livro com imagens produzidas no Rio e este ano encabeçou o projeto Offside Brazil, de documentação do País durante a Copa do Mundo. Nas palavras de Iatã Cannabrava, coordenador de programação do Paraty em Foco, “um dos maiores brasilianistas da fotografia”. Nestas páginas, Harvey apresenta parte do ensaio Divided Soul, em que joga, ao longo de 30 anos, um olhar afetuoso aos povos da América Latina. 

No site da Magnum há a seguinte frase sua: ‘Dá muito trabalho viver a vida que você quer viver, mas isso é o que estou fazendo’. Vamos começar por aí?

Ok. É que a minha vida é totalmente misturada. Não tenho vida profissional e vida pessoal. Elas são uma coisa só e isso dá muito trabalho. Eu vivo e respiro fotografia. Quando meus filhos eram menores eu os levava para todos os lugares a que ia a trabalho. Meus amigos cariocas aparecem no meu livro sobre o Rio. Eu não vou ao trabalho, não tenho um trabalho, faço tudo porque gosto e quero, inclusive analisar milhares de fotografias que me mandam. É um desafio fazer tudo isso acontecer. 

Por que tanto empenho na busca por novos fotógrafos?

A fotografia é hoje a única língua comum no mundo. Qualquer pessoa pode fotografar. É quase como falar, só que num idioma universal. Mas não é todo mundo que vai ser bom fotógrafo. Um americano pode saber escrever em inglês, no entanto, poucos serão grandes poetas. Então, se posso fazer meu trabalho e ao mesmo tempo olhar trabalhos de outra pessoa e dizer algo que talvez mude a vida dela, por que não? Eu não ensino ninguém, apenas tento maximizar o que alguns já têm de bom. Recebo milhares de trabalhos. Tento olhar tudo, dar uma chance a todos. E, acredite, alguns precisam de conselhos muito pequenos para fazer grandes coisas.

Por que escolheu a fotografia para viver?

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Aos 6 anos tive poliomielite. No longo período que passei no hospital vi muita gente morrendo ou ficando deformada. Quando saí estava bem, mas confuso. Meus amigos iam à escola e brincavam à tarde. Para mim, a morte estava por perto. Fui atrás da fotografia, acho, porque precisava capturar a vida. Mas a vida não é capturada com a fotografia, o que fazemos é tentar. Daí vem o fato de minha fotografia ser simples. Ela pode ser feita em qualquer lugar a qualquer hora. Não precisa de nada além do olho, da cabeça e do coração. Então, eu tento celebrar os dias normais. Nada grande está acontecendo? Eu tiro uma foto e aquele momento vira grande.

Do que tratam as imagens de Divided Soul?

Da América Latina. Sou apaixonado por esse continente de alma dividida entre o conquistador e o conquistado. Não quero ser parte disso, mas como gringo e outsider tento retratar tamanha beleza. A vida é um acidente, as coisas acontecem sem que a gente tenha planejado. Aí pegamos essas coisas e transformamos em planos. Fui uma vez ao México fazer um trabalho sobre a cultura maia e me envolvi muito naquilo. Passei a odiar os conquistadores. Então fui ler Isabel Allende, García Márquez, Carlos Fuentes. E depois de três anos fui para a Europa ver o lado dos conquistadores. De repente eu estava debruçado naquele tema havia uns 30 anos.

Você mantém o hábito de montar álbuns de fotos, como as famílias faziam antigamente. Qual o sentido disso na era das ‘nuvens’?

A fotografia tem um significado histórico. Ela sai no jornal, aparece na revista, mas de repente não está mais lá, esses lugares são todos temporários. Se eu imprimo, faço um livro ou monto um álbum encontro um lugar perene, permanente pra elas.

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