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A conta do pacto

Pela governabilidade, o presidente mexicano zerou os pecados do governo anterior, deixando sem investigar 70 mil assassinatos e comprando todo um conflito

Por Jorge G. Castañeda
Atualização:
Mau momento.Para autor, Peña Nieto enfrenta sua pior sequência de infortúnios Foto: YURI CORTEZ/AFP PHOTO

O México não vive seu momento de maior violência nos últimos tempos, mas vive um de acontecimentos que despertaram uma indignação e uma consciência insólitas dentro e fora do país. As dezenas de milhares de mortes e desaparecimentos do governo anterior de Felipe Calderón foram piores que os números de agora: massacres como o de 72 hondurenhos em San Fernando, Tamaulipas, no norte do país, apequenam o horror dos 22 executados por soldados há três meses, a 100 km da Cidade do México. A cumplicidade das polícias municipais e estaduais com os marginais da cidade de Iguala, também perto da capital do país, não surpreende depois de casos anteriores como os de Ciudad Juárez, Torreón ou Tijuana. Mas nada provocou uma reação tão veemente e duradoura em todos os âmbitos da sociedade mexicana como as execuções de Tlatlaya e os desaparecidos de Ayotzinapa. Se somarmos a isso os novos episódios de cinco execuções extrajudiciais por militares em Luvianos e três jovens americanos assassinados em Matamoros, a curta distância da fronteira dos EUA, compreende-se por que não é exagero dizer que o governo de Enrique Peña Nieto (EPN) enfrenta sua pior sequência de infortúnios. Ele se encontra paralisado e sem saídas de curto prazo.

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Para entender como perdeu o rumo um regime que parecia dominar a agenda política, conseguiu a aprovação legislativa - nem sempre concretizada ainda - de importantes reformas estruturais e havia se caracterizado por uma homogeneidade eficiente, é preciso voltar à eleição presidencial de 2012. EPN foi eleito com 38,21% dos votos, sem maioria em nenhuma das duas Câmaras, e com o governo do Distrito Federal, segundo cargo eleitoral do país, nas mãos da oposição. Não eram as condições que ele esperava, nem as necessárias para consumar um ambicioso programa de reformas. Daí a necessidade de negociar o chamado Pacto pelo México: graças a seus 95 pontos, “ele sacudiria o México” e “transformaria o país”, que “cresceria 5%”. O pacto tem sido uma iniciativa importante para o México, mas como toda ação política, tem um preço. A ideia de que avanços, mesmo parciais, carecem de custos pertence à imaginação de ignorantes e tolos.

Um dos custos escondidos no Pacto pelo México e das reformas aprovadas foi passar uma borracha nos seis anos anteriores. Sem o apoio dos senadores ligados ao presidente Felipe Calderón, EPN não teria aprovado a reforma energética, por exemplo. Portanto, os 70 mil mortos e 25 mil desaparecidos de Calderón não serão investigados nem seus responsáveis castigados. As vítimas não eram todas delinquentes: os narcotraficantes e os sicários não conseguiriam matar tantos narcotraficantes e sicários. O índice de letalidade é a diferença entre os mortos de um lado e de outro do enfrentamento. Quando todos os mortos pertencem ao bando dos “maus” e no bando dos “bons” não há mortos e só uns poucos feridos, alguma coisa está errada: trata-se de “execuções extrajudiciais”. As contas não fecham sem incluir essa figura na atribuição de responsabilidades. O governo de Peña Nieto decidiu não investigar os responsáveis pelas execuções; nem sequer se propôs a saber o número de desparecidos, reduzindo o orçamento da unidade de investigação da procuradoria. Essa posição, além de moralmente questionável, tem consequências: Peña Nieto comprou um conflito que não era seu.

Há três meses, num pequeno município do sul do Estado do México, morreram 22 pessoas num enfrentamento a tiros com o Exército. Os 22 faziam parte de um grupo de supostos delinquentes; do lado militar eram apenas sete efetivos, um dos quais sofreu um ferimento na perna. Durante três meses, as autoridades civis e militares encobriram o massacre; por fim, o próprio governo federal reconheceu que a tropa era responsável e começou a julgar vários soldados. Mas a gente se pergunta: a impunidade de dezenas, se não centenas, de casos semelhantes durante o governo anterior não teria sido um incentivo para seguir por esse caminho? A execução de cinco civis em mãos de militares em fins de outubro, a poucos quilômetros de Tlatlaya, em condições análogas, não se deveria em parte ao mesmo exemplo de impunidade?

Uma explicação adicional foi o dilema da estratégia de segurança. Depois da hecatombe de Calderón, era indispensável mudar de registro e fazer como se o problema da violência se encontrasse em vias de solução com uma nova estratégia - a cooperação entre níveis de governo -, de uma mudança de discurso - da guerra à promoção da economia - e de instrumentos - mais inteligência e uma nova e infelizmente minúscula polícia militar. Além do equivalente político do princípio da incerteza de Heisenberg: se as pessoas acreditassem que a violência diminuía, na melhor hipótese ela efetivamente diminuiria.

Peña Nieto, assim como seus três antecessores, negou-se a optar entre duas vias incômodas e incompatíveis. Ou bem o México transforma por completo sua estrutura fiscal, de modo que os municípios e Estados, que hoje não arrecadam praticamente nada, obtenham recursos fiscais próprios para pagar polícias úteis à cidadania e não ao crime organizado; ou se abandona a tese absurda de um esquema policial federalista, copiado dos Estados Unidos, e o substitui por uma polícia nacional única, como no Chile, Brasil ou Canadá, entre outros. Seguir ambos os caminhos equivale a não seguir nenhum e, com isso, envolver o Exército. O que leva, direta ou indiretamente, aos resultados sangrentos conhecidos.

O assassinato de 6 pessoas e o desaparecimento de 43 alunos de uma escola normal do Estado de Guerrero há um mês constitui um divisor de águas na guerra mexicana contra o narcotráfico, quando o regime de Peña Nieto conclui seus primeiros dois anos. O governo federal não provocou nem permitiu a catástrofe, mas tampouco soube, ou se inteirou, do verdadeiro estado de coisas nessa entidade ou em outras. A guerra fracassou faz tempo; o esquema de governo do presidente não, mas poderá naufragar se ele não tomar precauções. Alguns fatores - a letargia da economia mexicana, cujo crescimento médio nesses dois anos dificilmente excederá 1,5%; a queda dos preços do petróleo, que financia um terço do orçamento; a debilidade do governo de Washington, sempre decisivo para muitos temas mexicanos - fogem do seu controle. Outros não, tanto no âmbito da segurança como no da educação, da política externa, de mudanças institucionais, de informar o país em que estado o recebeu e de ativação de uma sociedade civil, mais desperta, mas ainda passiva em comparação com outras. Dá a impressão de que com algumas mudanças cosméticas em certos casos, e de indiferença discreta em outros, Peña Nieto esperasse que a nova marcha da economia, desencadeada pelas reformas, por si só resolvesse tudo. Isso não aconteceu. Mais ainda, sente-se que Peña Nieto, um grande tático, cercado de bons operadores e técnicos, carece de visão estratégica - como se acomodam as peças do quebra-cabeça - e de uma ideia mais sofisticada do país que havia e o que ele deseja entregar. Até agora, ele pôde prescindir da ideia e da estratégia. Parece que não pode mais. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

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Jorge G. Castañeda é cientista político. Foi chanceler do México entre 2000 e 2003. E é autor de Utopia Desarmada. Escreveu este artigo especialmente para o Aliás

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