A Copa dos desconvocados

Os craques e dramas das 16 seleções que disputaram a 1ª Copa dos Refugiados de São Paulo

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Por Taisa Sganzerla
Atualização:
AFRICA / 07/08/2014 / ALIAS / COPA DOS REFUGIADOS / Jogadores da Guiné comemoram a vitória sobre a Costa do Marfim. Crédito: Taisa Sganzerla Foto: Taisa Sganzerla

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“Defende o goleiro da Nigerriá! Mas non passa nada por esse goleiro! Vamos Congô! Tem que reagir!”. Imparcialidade não é o forte de Romeo Guslarime, o “Lobisomem”, narrador oficial dos jogos de uma outra copa do mundo sediada pelo Brasil: a dos Refugiados, realizada em São Paulo no último fim de semana. Sempre enrolado na bandeira de Camarões, país onde cresceu, e misturando um português ainda mesclado com francês, não perde a oportunidade de provocar o escrete da Nigéria, com que seu time tem uma rivalidade histórica no futebol africano - “como Brasil e Argentina”, ele me explica. Torcedor do Timão, emenda entre um lance e outro um “Vai, Corinthians!”, assim, fora de contexto mesmo. Naquela manhã de domingo, segundo dia do torneio, cerca de 500 pessoas assistiam às seleções da República Democrática do Congo e da Nigéria disputar uma vaga na semifinal do campeonato, realizado no Centro Esportivo Glicério, no centro. Enquanto Romeo narra, gotas de suor escorrem da testa de Uchen Henry, nigeriano de 20 anos que assiste atentamente à cobrança de pênaltis que definirá o resultado. Com as mãos agarradas ao alambrado, em meio a gritos de c’est bon de um lado e well played de outro, Uchen apela aos deuses: “De presente de aniversário, quero a Nigéria campeã desta copa”. O placar: 3 a 3. O goleiro da Nigéria, no melhor estilo Rogério Ceni, parte para a última cobrança. Se marcar, o time se classifica.

Tanto Romeo quanto Uchen estão em São Paulo há dois anos. O primeiro se sustenta com dificuldade como músico, o segundo, também músico, dá aulas de inglês. Uchen é fã de R&B. Romeo é rapper. Ambos dizem ter fugido de seus países por causa de perseguições e sonham em viver só de música. Enquanto o estrelato não chega, compuseram o Hino Oficial da Copa dos Refugiados (confira no vídeo abaixo), que diz “briga e guerra, vamos deixar para trás / refugiados, nós somos capaz (sic)”.

A ideia da Copa surgiu embaixo do viaduto Alcântara Machado, na altura da Rua do Glicério, em uma quadra poliesportiva onde imigrantes se reúnem todos os domingos para bater uma bolinha. Com o apoio da Caritas Arquidiocesana e do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), providenciaram uniformes e chuteiras, além de convocar as comunidades de imigrantes. Assim, formaram-se seleções da República Democrática do Congo, Nigéria, Costa do Marfim, Mali, Camarões, Angola, Serra Leoa, Burkina Fasso, Guiné, Togo, Bangladesh, Síria, Iraque, Paquistão, Afeganistão e Colômbia. Os haitianos, parte do mais recente fluxo migratório para o Brasil, não se organizaram a tempo de participar - mas fizeram um amistoso contra Gana, que venceu por 4 a 1. 

“A ideia era aproveitar a empolgação com o Mundial da Fifa para unir os refugiados de São Paulo. Todos viemos de países com guerras e conflitos e queríamos passar uma mensagem de paz”, conta Romeo. O torneio dos refugiados apenas esperou o fim do mês do Ramadã, quando muçulmanos jejuam durante todo o dia, até o pôr do sol. Todas as despesas foram pagas com doações e alguma contribuição do Acnur e da ONU Mulheres. O campeonato acabou celebrando uma outra conquista: no último dia 30, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) aprovou, de uma só vez, 680 pedidos de refúgio - número maior que o total de todo o ano de 2013. Desde 2010, o número de solicitações de refúgio no País cresceu 800%. Com os novos deferimentos, a população de refugiados no Brasil passou a ser de 6.588 pessoas de 80 nacionalidades diferentes. 

Para Larissa Leite, Coordenadora de Relações Externas da Caritas Arquidiocesana, a Copa dos Refugiados tem todo o potencial para se tornar um evento regular da cidade de São Paulo. “Tanto a comissão organizadora quanto os jogadores se envolveram muito e já estão discutindo uma próxima edição.” A meta para o ano que vem é obter novas parcerias e ampliar o número de seleções participantes.

“Gooool da Nigerriá! A Nigerriá está na semifinal! Tchau, Congô!”, grita Romeo, já rouco. A festa é de Uchen, que invade o campo com seus companheiros de torcida para carregar o goleiro, autor do gol da vitória. Uchen vai fazer 21 anos este ano. “Vai fazer”, ele me explica, é como se diz a idade na Nigéria. “Sempre a quantidade de anos que estamos prestes a completar, e não a idade que já temos”. 

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Foi quando “ia fazer” 19 anos que a vida de Uchen mudou para sempre. Um dia, ao chegar da escola, conta, encontrou o irmão mais velho, com quem morava, estirado no chão da sala de casa, ensanguentado. Com alguns vizinhos, tentou levá-lo ao hospital, mas ele morreu no caminho. O irmão de Uchen era líder do sindicato dos pescadores da cidade de Eti-Osa, situada nos arredores de Lagos. Após meses de atrasos nos pagamentos, ele e outros colegas haviam promovido um boicote a um dos maiores compradores de peixe da região, um vereador da cidade que também é dono de uma empresa distribuidora de frutos do mar. Teria sido a mando do político que o irmão de Uchen foi assassinado. “Fomos dar queixa na polícia, mas a resposta que recebemos é que eles não queriam criar confusão com uma pessoa influente.”

Naquele mesmo dia ele passou a receber ameaças de morte. Apavorado, pegou algumas coisas para comer, foi ao porto da cidade e conseguiu se esconder no porão de um navio, cujo destino desconhecia. “Passei cinco dias sem sair do porão. Só saí para procurar algo para comer quando não aguentava mais de fome.” Duas semanas depois, o navio finalmente atracou e o viajante clandestino resolveu dar uma espiada no cais do lado de fora. Tomou um susto. “Só via pessoas brancas por todos os lados. Tive certeza de que não estava mais na África.” Viu hasteada uma bandeira do Brasil e resolveu descer: era o porto de Santos. Sem dinheiro e sem falar uma palavra de português, conseguiu um prato de comida num restaurante e uma passagem de ônibus para São Paulo, onde procurou a Caritas, que encaminhou seu pedido de refúgio. 

Enquanto a Nigéria comemorava a vitória, a seleção da Síria se preparava para o jogo contra o favorito Camarões. A Síria foi a única seleção não africana classificada para as quartas de final, após derrotar Bangladesh por 2 a 0. Tanto no uniforme dos jogadores como na tabela pendurada na parede externa dos vestiários estranhamente não se via a bandeira síria, apenas um retângulo branco com o nome do país. “Agora temos duas bandeiras na Síria”, explica Nour Koeder, goleiro do time: “Uma do regime, que é a que você conhece, e outra da oposição”.

Nour chegou a São Paulo há sete meses e já fala um português quase perfeito. Entre seus conterrâneos, vê-se uma pequena proliferação de supostas camisas da Gap e relógios de marca, o que dá a impressão de que a situação dos sírios que conseguem fugir para o Brasil é um pouco melhor que a dos africanos. Nour é formado em design de moda - desenhava vestidos de noiva na Síria. Aqui, trabalha como vendedor de roupas. O caso é parecido com o de Ahmad Almazloum, formado em engenharia biomédica e com mestrado em inteligência artificial, hoje trabalhando como estoquista de uma fábrica no Brás. Ahmad foi o intérprete da entrevista com outro boleiro do time sírio, Mohammed Al-Shihabi, em São Paulo há só quatro meses, ainda com dificuldades para se comunicar. Mohammed conta que deixou em Aleppo a família e seu negócio, uma loja de véus. “Antes da guerra, vivíamos como reis lá, mesmo com o medo constante do Bashar. Aleppo era uma cidade incrível, bonita. Agora, está sendo completamente destruída, como todo o país”, lamenta. Pensa em voltar para a Síria? “Insha’Allah, se Deus quiser, um dia a guerra acaba e eu volto”.

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“Camarrões vai ganhar de quanto da Sírria? Serrá 11? Serrá 12? Já não vou conseguir contar os gols de Camarrões nesse jogo”, brinca Romeo ao microfone, montado num tanque de concreto. Parte do público grita “Síria! Síria!”, em apoio aos jogadores que entram em campo - só para provocar o locutor camaronense. Não adianta. O time da Síria não é páreo para os vigorosos camaronenses, que aplicam um chocolate de 6 a 0. É claro o domínio dos africanos na copa. Altos, fortes e com mais intimidade com a bola, fizeram da Síria, Paquistão, Iraque e Afeganistão presas fáceis - os dois últimos perderam por 10 a 0 para Camarões e Togo. “Coloquem eles pra jogar críquete conosco e vamos ver quem vence”, resmunga Saifullah Al Mamun, 27, “técnico” de Bangladesh. No domingo, após a eliminação, seu time e o do Paquistão disputaram uma partida de críquete no intervalo do almoço - partida interrompida precocemente, já que um único jogo de críquete pode levar dias.

Como no Mundial de junho, a Copa dos Refugiados também teve sua zebra. Costa do Marfim, uma das favoritas ao título, cuja seleção oficial é a segunda mais bem colocada no ranking da Fifa, foi eliminada pela Guiné no primeiro jogo, nos pênaltis: 5 a 4. João Desirée, de 24 anos, um dos destaques da Costa do Marfim, justifica-se: “Ficamos os três melhores no ataque e não conseguimos ter uma boa saída de bola. Não adianta se o time não está bem articulado”. Em seu país, Desirée foi profissional e jogou no Issia Wazi, time da segunda divisão. Veio para o Brasil fugindo da guerra civil de 2010. Ao chegar em São Paulo, passou de boleiro a pedreiro da construção da Arena Corinthians, em Itaquera. “Jogar futebol é o que sei fazer na vida. Mas é difícil conseguir algo aqui sem conhecer ninguém na área.”

Os vencedores da Guiné, por outro lado, não passam recibo desse favoritismo. “Nós é que temos o melhor time da Copa”, decreta Thierno Abdourahamane, de 24 anos, dois deles vividos em São Paulo. Thierno é uma espécie de “anjo” dos refugiados de seu país que chegam ao Brasil. “Ajudo com a papelada, busco no aeroporto, hospedo na minha casa de graça e cozinho para todo mundo. Passei por muitas dificuldades quando cheguei aqui e prometi a Deus ajudar outros imigrantes com o que puder.” Atualmente, sete outros guineenses moram na casa de Thierno, que iniciará este mês sua segunda faculdade - de engenharia civil, que paga do próprio bolso, após formar-se em contabilidade em seu país. 

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O “anjo” passou ele mesmo por maus bocados. Deixou na Guiné uma esposa grávida de 7 meses, que veio a falecer no parto. “Foi a pior notícia que recebi em toda minha vida.” Os filhos gêmeos, de 1 ano e 3 meses, vivem lá com a mãe de Thierno. “Quero trazê-los para cá quando ficarem maiores. Mas sei que será difícil, pois eles nem mesmo me conhecem.”

Em campo, apesar de embalada, a Guiné caiu diante da Nigéria na semifinal. A final seria mesmo o grande clássico africano: Nigéria e Camarões. Depois de um jogo disputado, os “Super Eagles”, como são conhecidos os jogadores nigerianos, partem para outra dramática disputa de pênaltis. Um torcedor nigeriano embala ao trompete uma melodia gospel equivalente ao nosso “sou brasileiro com muito orgulho”. Quando Ifeanyi Michael se prepara para bater a última cobrança, Romeo abandona de vez a compostura: “Vai perderrr esse pênalti, vai perderr!”. Dessa vez, porém, os desejos do refugiado Uchen é que foram atendidos. Vai, Nigerriá!

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