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A festa dos nossos trapos coloridos

Em Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo, escola da última divisão recicla sobras e sonhos para continuar existindo

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Por Gilberto Amendola
Atualização:
  Foto: Tiago Queiroz | ESTADÃO CONTEÚDO

Roupas comuns dependuradas no varal, qual bandeiras agitadas, e um astro dourado e distraído repousando no reboco da parede. Sobras de uma folia antiga, retalhos de outro fevereiro, cobrem o chão onde uma passista conserta o próprio salto e lamenta ter perdido o Bilhete Único. Perto, guardião, um labrador que quase não enxerga. reage ao som dos primeiros tamborins e de uma escandalosa máquina de lavar. No quintal de dona Gilce, tudo o que existe flerta com a crueza e o irreal, tudo é um pouco cenário de sonho e alegoria.

A casa número 120 da Rua Jorge Riguetti, na Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo, está toda do avesso. As fantasias empilhadas no corredor, feito trincheiras coloridas, indicam que a rotina deve esperar até quarta-feira de cinzas. A televisão ligada na novela, os pratos sujos na pia, o Buda em cima da geladeira e o quadro de um Preto Velho que pende, torto, na sala de estar são os últimos resquícios de um lar comum.

  Foto: Tiago Queiroz | ESTADÃO CONTEÚDO

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Mas nem sempre foi assim, claro. Em agosto do ano passado, cada móvel ainda ocupava o seu devido lugar. O primeiro sopro de desordem aconteceu quando Gilce, concentrada em seu ofício, sentadinha diante de uma máquina de costura Singer, relíquia com quase meio século de uso, assustou-se ao ver seus dois filhos (Anderson e Cleiton) irromperem eufóricos pela porta. “Mãe, mãe, vamos montar uma escola de samba.”

Cria da Nenê de Vila Matilde, princesinha do asfalto de velhos carnavais, sentiu aquele sangue de confete e serpentina correndo outra vez. “Isso vai ficar perigoso”, pensou. O plano dos meninos era mesmo audacioso: ressuscitar a Estrela Cadente[ ], agremiação integrante do grupo 4 do Carnaval de São Paulo, nossa última divisão. A escola estava [/ ]alijada dos desfiles desde 2010, punida por não conseguir reunir 300 componentes em sua última performance.

  Foto: Tiago Queiroz | ESTADÃO CONTEÚDO

A primeira providência foi passar o chamado Livro de Ouro entre os comerciantes do bairro. Como reza a tradição carnavalesca, aqueles que decidem colaborar com qualquer quantia têm a honra de ver o nome estampado no tal livro, tornando-se uma espécie de sócio emérito da agremiação ajudada. Anderson e Cleiton visitaram armazéns, padarias, serralherias, salões de beleza, pizzarias e nada. A crise e a falta de interesse fizeram com que o livro voltasse sem uma única assinatura.

A verba da Prefeitura, R$ 16 mil, só chegaria na semana do desfile, tarde demais para quem precisava levantar uma escola do chão. Sem patrocínio, nem de político espertalhão, nem de barão do jogo do bicho, foi preciso, literalmente, revirar o lixo de outros carnavais, reutilizar e reciclar fantasias e adereços das coirmãs.

  Foto: Tiago Queiroz | ESTADÃO CONTEÚDO

O cozinheiro, ferroviário e carnavalesco Dário Nascimento chorou ao ver o quintal de dona Gilce repleto de sobras e carcaças. Por alguma razão, sentiu que aquele trabalho, que beirava o milagre de abrir um mar vermelho de purpurina, estava muito além de suas energias. Nessa mesma noite, atordoado, Dário dormiu no chão da sala da dona Gilce. Para se proteger dos mosquitos, pendurou a fantasia da porta-bandeira no lustre e abrigou-se debaixo de sua gigantesca saia. Ali, protegido, sonhou um carnaval possível.

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Dia seguinte, ânimo renovado, Dário defendeu que o enredo fosse algo como “Respeitável Público Abram-se os Portais da Magia para o Grande Picadeiro Místico”. “Só um enredo abrangente permitiria à escola retrabalhar o material garimpado e reutilizá-lo de forma coerente”, diz.

Com bons contatos nas escolas de samba do grupo Especial, a Estrela Cadente conseguiu que a Gaviões da Fiel emprestasse dois ursos gigantes, sobreviventes de desfiles de outrora. A dupla irá enfeitar o único carro alegórico da escola de Cidade Tiradentes que, aliás, também será emprestado. Sem barracão, os ursos quedaram-se na garagem de dona Gilce, cobertos com lona preta para não se desmancharem durante as eventuais chuvas de verão.

Quem também tem dormido no sofá da sala é a própria porta-bandeira da escola, Maria Cristina Barba, conhecida como Foguetão. Cabeleireira, manicure e designer de unhas, Foguetão parece ter o coração maior do que a Sapucaí. “Não sou igual à maioria. Tenho o meu jeito, sou gordinha, mas sou possuidora de um segredo: tenho rodinhas nos pés que são capazes de me fazer rodar e rodar por toda a avenida.”

Foguetão é sempre uma das primeiras a chegar nos ensaios, está sempre disposta a ajudar nos últimos ajustes ou mesmo feliz em ir pra cozinha, encher de arroz, feijão e salsicha o prato de quem está se doando apenas por mais uma ilusão de carnaval.

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Ilusão que teve seu penúltimo ato durante o ensaio geral de quinta-feira. Às 21h, um Gol ano 95 para na frente da casa/barracão e começa a desembarcar os instrumentos. Surdos, caixas, repiniques, chocalhos, reco-recos e tamborins vão sendo espalhados pela rua. O Gol, heroico, ainda faz mais três viagens. Mas no fim lá estava a bateria, o coração da escola, prontinha pra pulsar outra vez, com seus 30 componentes.

Metade dos instrumentos é de segunda mão, alguns recauchutados com esmero e outros comprados em cima da hora. Caio Augusto, diretor de bateria, não tergiversa, diz que para azeitar o som da escola vai levar pelo menos 5 anos. “Eu posso prometer um som digno e aceitável, suficiente para garantir uma boa nota, quem sabe um 10, levando-se em conta os níveis de exigência do Grupo 4.”

A bateria conta com um reforço extra, o preferido da dona Gilce, o neto João Pedro, de 11 anos. Cena tocante foi assistir à avó protegendo os dedos finos do menino com fita isolante para que ele não se machucasse com as lascas da baqueta ou criasse bolhas nas mãos. Agora, todos sabem, crianças são cruéis. Gilce teve que ouvir do próprio João que ele não pretende seguir a tradição familiar. Tão logo for descoberto por algum olheiro, vai trocar o samba pelo futebol e se tornar o próximo meia-atacante do Corinthians.

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O som já crescia na rua, mas duas figuras ainda não se faziam presentes. A rainha da bateria e o mestre-sala. A ausência da rainha, que não conseguiu voo para voltar de Belém do Pará, abriu espaço para as duas princesas. Uma, estudante de direito; outra, garçonete e professora de samba-rock. Nem muito peito, nem muita bunda. Apenas lindas, cobertas de energia e personalidade, representantes reais de uma vida real. “Claro que eu acho aquelas mulheres da televisão bonitas. Mas aqui é outra coisa. Aqui ‘é nóis’ no samba”, brinca a princesa Ariadna Kocaia.

Já o mestre-sala oficial teve problemas com o carro e não conseguiu chegar. Disseram que tinha um outro mestre-sala de primeira na vizinhança, um que não iria deixar a turma na mão. Mas cadê ele? Quando Manoel Napoleão da Silva, o Napa, aparece de camisa branca, calça branca, sapato branco, brandindo, claro, um lenço branco, não se tem dúvida de que o ensaio está salvo.

Esguio, o servidor público Napoleão parece saído de um carnaval dos anos 30 ou, quem sabe, de um conto do João Antônio, faltando apenas um taco de bilhar em uma das mãos. O sujeito conduz a Foguetão com elegância sem derramar uma gota de suor, mesmo que, às vezes, pareça ser engolido pela energia dela. “Meu papel é impor respeito”, fala Napoleão.

Na rua, a comissão de frente faz o seu ensaio. Nenhum bailarino profissional. Seus integrantes são estudantes, atendentes de telemarketing e desempregados. Nos braços e pernas da turma, marcas de cola quente, tatuagens conquistadas na labuta de retocarem a própria fantasia.

A vizinhança começa a chegar, saem das casas e descem do emaranhando de conjuntos habitacionais que compõem a Cidade Tiradentes. Cidade Dormitório Tiradentes, lugar de uma gente que já sonhou com a casa própria, mas acabou se instalando num lugar com poucas opções de trabalho, distante do centro, duas horas de condução de qualquer salário mínimo.

Mas o batuque, a folia, traz um senso de pertencimento. As pessoas vão se irmanando no ritmo puxado da bateria. A criançada vem junto. Aparecem de todos os lugares. Vira-latas também. Os mais idosos abrem suas garagens e, de cadeirinha plástica nas mãos, se ajeitam para ver tudo do meio-fio. Nas lajes e puxadinhos, surgem camarotes insuspeitos, bocas-livres de salgadinho, cervejinha de lata e Dolly Guaraná. Não tem fotógrafo de revista de fofoca. Não tem celebridade. Tem gente. E até o pastor que ameaçou reclamar, olhando a alegria de tantos fiéis decide recolher a Bíblia e voltar pra casa. Nem a polícia apareceu.

A direção pede seriedade. A escola não pode perder pontos no desfile deste ano. Se for desclassificada outra vez, acabará banida definitivamente do carnaval oficial da cidade. Um risco que ninguém quer correr, uma culpa que nenhum componente quer carregar nas costas. O desfile na noite de sábado para domingo, na Vila Esperança, tem que ser perfeito.

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Por isso, o samba está na ponta da língua. “Um grito de susto vem da multidão/ Um show de terror e aberração/De repente um suspense no ar/ O atirador de facas faz o povo delirar.” O pavilhão da escola é beijado respeitosamente por seus integrantes mais icônicos. Uma solitária baiana gira tanto que já não sabe mais em que dia de semana está. A escola passa aplaudida pelos seus pares e, mesmo sem saber, mesmo tendo apenas ensaiado um desfile improvisado, já pode se sentir campeã. Pouco importa o resultado oficial. Empolgado, o presidente, o Anderson filho da dona Gilce, diz que daqui 5 anos a escola vai disputar lá em cima, vai desfilar no Anhembi e ter seu próprio barracão. Não precisa. Claro que não precisa. Mas pode acontecer. Claro que pode. A Estrela cadente já caiu uma vez. Agora, só resta subir novamente.

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