A filosofia de Merleau-Ponty nos filmes de Andrei Tarkovski

'Solaris' e 'Stalker' se valem da fenomenologia da percepção para responder à Guerra Fria

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Por Donny Correia
Atualização:
Cena do filme 'Solaris', de Andrei Tarkovski, baseado no livro homônimo de Stanislaw Lem Foto: Mosfilm

A natureza é reativa e, há 40 anos, em tempos de Guerra Fria, mais ameaçadora que uma bomba desenvolvida por qualquer um dos lados da Cortina de Ferro. Ameaçadora não pela possibilidade de uma obliteração global e sim por segregar o quiasma inato firmado com a mente e o espírito do ser.

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Duas obras do cineasta Andrei Tarkovski abordam diretamente o tema de uma inteligência etérea e seus efeitos sobre a limitada incursão humana no campo do conhecimento universal, Solaris (1972) e Stalker (1979). Há duas chaves de leitura possíveis para ambos. Uma delas, mais imediata, pode ser interpretada como uma resposta – rebuscada, verdade – às metáforas americanas para as ameaças do comunismo nos anos 1950 e 1960 ( zumbis, ETs e criaturas mutantes). A outra, menos óbvia, é a relação com a complexa fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty.

Em Solaris, o psicólogo Kris Kelvin é solicitado a viajar até uma estação espacial sucateada onde seus ocupantes estão diante de alguns mistérios advindos do oceano de um planeta que parece tentar uma comunicação com a raça humana. Embora o fenômeno seja uma prova incontestável de vida extraterrestre inteligente, paradoxalmente os ocupantes da estação estão perdendo o juízo. Um deles comete suicídio imediatamente antes da chegada de Kelvin. Sem compreender por completo o que se passa, o enviado acaba envolvido nos mistérios de Solaris quando encontra perambulando pelos corredores arruinados do local sua esposa, Khari, que se matara dez anos antes. Confuso, febril e consumido pelas tramas do oceano, Kris terá de lidar com aspectos do seu passado e do seu presente num plano fenomênico que já não é mais claro se verdadeiro ou inventado por si, pelos sobreviventes da estação ou pelo planeta misterioso.

Stalker retoma o homem decrépito expelido num mundo hostil. O nome do filme se refere à profissão de seu protagonista, uma espécie de guia contratado por um professor de física ambicioso e um escritor alcóolatra e niilista, que pretende usar a viagem até a Zona, uma área isolada pelas autoridades e mantida sobre o mais sigiloso zelo, para ao menos inspirar-se em suas criações literárias e provar que não há sentido em absolutamente nada naquele mundo. A Zona, dizem, é uma área em que há muito uma vida extraterrestre inteligente teria aportado e transformado a natureza em volta numa força interativa, conforme as disposições de seus visitantes humanos.

No decorrer de tomadas longas, cuidadosamente esculpidas por Tarkovski, ficam pronunciadas as forças imbricadas que a Merleau-Ponty se refere, numa relação de inerência. O corpo, em sua filosofia, é um sistema que opera em relação sistêmica, reorganizando-se conforme o mundo percebido. E neste sentido, questões metafísicas como as que são postas por personagens à beira da letargia, a saber, “O que nos aguarda adiante?”, “O que quer de nós aquilo que não vemos?”, permeiam as descobertas de uma transcendência enviesada. Não à toa o cientista Snout, a certa altura de Solaris, pondera “A loucura pode ser a salvação”.

Talvez por isso o guia de Stalker não dê muita importância aos apelos da esposa para que considere o autismo da filha ao deixar a família para se embrenhar na Zona. A menina guarda poderes provavelmente herdados do próprio pai, um Cristo pós-moderno – detentor de uma verdade para a qual a humanidade não está pronta – que é mais íntimo da zona proibida do que seus companheiros de viagem supõem.

A fenomenologia também está impressa na “ressurreição” de Khari, esposa de Kris, já que o oceano de Solaris parece se valer do resíduo do desejo humano para cristalizar o que de mais improvável há segundo regras estritas da lógica: um passado que está contido no presente imediato e pode ser vislumbrado no horizonte de um futuro que retém o presente e o envolve.

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Partindo do princípio que a arte é o medidor entre visível e vidente, o meio catalizador de um mundo sintetizado na obra, a natureza reativa debruça-se sobre o criador tanto quanto o criador se debruça sobre seu espectador. Tarkovski desenvolveu câncer poucos anos após Stalker. Diz-se que por consequência da contaminação química na área ao redor de uma das locações, na Estônia. Poderia ser uma profecia fenomênica do escritor bêbado quando sentencia algo como “Podemos ser salvos por esta força invisível, mas também destruídos por ela.”

*Donny Correia é poeta e ensaísta, mestre e doutorando em estética e história da arte pela USP 

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