PUBLICIDADE

A incrível, fundamental e transformadora Fundação Bienal de São Paulo

Presidente da Bienal assina artigo sobre a história da fundação que revolucionou a arte em São Paulo

Por João Carlos de Figueiredo Ferraz
Atualização:
Ciccillo Matarazzo, fundador da Bienal de São Paulo, e sua mulher, Balbina Martinez Foto: Olney Kruse/Divulgação

Se, em 1948, o empresário e mecenas Ciccillo Matarazzo (Francisco Matarazzo Sobrinho) tivesse apenas fundado o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), oferecendo como doação toda sua coleção de arte moderna brasileira a este museu, já teria certamente, com esse gesto, deixado um legado cultural considerável para a cidade. Mas, no segundo semestre deste mesmo ano, Ciccillo faz uma longa viagem à Europa, acompanhado de sua mulher, Yolanda Penteado, e visita pela primeira vez a Bienal de Veneza. Encantado com o modelo da exposição veneziana, que a princípio tinha como intuito estimular o turismo naquela cidade, Ciccillo imagina neste projeto uma grande oportunidade para o Brasil. Volta entusiasmado e, dois anos mais tarde, leva para Veneza a primeira delegação brasileira a participar da mostra. Certo dia, em meados de 1950, segundo Yolanda Penteado, Ciccillo lhe pergunta: “O que você acha de fazermos uma Bienal em São Paulo?”

Dessa maneira, em meio a um susto e a um grande improviso, foi criada aquela que seria a segunda maior bienal internacional de arte do mundo. Naquele momento, a grande diferença entre as duas bienais, a de Veneza e a de São Paulo, era que, estando no coração da Europa, a Bienal veneziana se mostrava como mais uma grande exposição da arte do seu tempo, isto é, abrigava todos os movimentos de vanguarda que explodiam ao seu redor na produção europeia, enquanto no Brasil e na América Latina esses movimentos eram quase que totalmente desconhecidos. É importante ressaltar que, embora alguns poucos artistas brasileiros viajassem e realizassem estudos e residências no exterior, a grande maioria se mantinha desinformada, em razão da precariedade das publicações disponíveis e da enorme dificuldade de comunicação da época. Vale ressaltar também que estávamos na segunda metade do século 20, quando o mundo acabava de sair de uma grande guerra, o modernismo não mais representava os valores culturais vigentes e uma nova estética e poética se impunham fortemente na manifestação cultural.

Primeira Bienal de São Paulo, realizada em 1951 Foto: Arquivo/Estadão

PUBLICIDADE

 incumbência de organizar essa extraordinária tarefa foi delegada por Ciccillo Matarazzo ao diretor artístico do MAM-SP, Lourival Gomes Machado, que, não sem antes muita reclamação, a executou com competência e dedicação. Assim nasceu a 1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Essa Bienal de São Paulo possibilitou o fim do isolamento e do provincianismo local, unindo as regiões do país, e mais: fez um intercâmbio cultural entre o Brasil e as nações latino-americanas. Tinha a intenção de conquistar para a cidade de São Paulo a posição de centro artístico mundial e, ao obter repercussão extraordinária, pode colocar artistas brasileiros em contato com a mais nova produção contemporânea, estimulando polêmicas e assimilação de novas linguagens.

Realizada improvisadamente no pavilhão do Trianon (onde posteriormente seria construído o Masp), a Bienal de São Paulo abriu suas portas em outubro de 1951 com 1.800 obras de arte provenientes de vinte países convidados. A novíssima arte apresentada pelas delegações de cada país trazia nomes consagrados, mas muitos deles desconhecidos dos artistas e público local, evidenciando a defasagem de algumas décadas nas artes plásticas brasileiras. A grande unanimidade foi a delegação suíça e a premiação do artista Max Bill com a escultura Unidade Tripartida. Apesar de já ter exposto no Brasil em 1947, juntamente com Alexandre Calder, as obras de Max Bill na Bienal de São Paulo influenciaram definitivamente os rumos da arte abstrata brasileira de então. Era a marca definitiva, incontestável, de um processo de modernização, configurado pelos rigores do construtivismo e da formalidade geométrica na linguagem plástica. Com esses traços, consolidou-se aqui efetivamente o moderno, envolvido pela atmosfera da novidade, da polêmica, da vanguarda e da diversidade da arte contemporânea. O construtivismo geométrico se impôs não apenas no Brasil, mas também na Argentina, no Uruguai, na Venezuela e na Colômbia, mostrando a força da influência exercida pela Bienal. Outros artistas importantes e movimentos da vanguarda estiveram presentes, como o abstracionismo informal de Jackson Pollock, Alberto Magnelli, Fernand Lèger, Pablo Picasso, Alberto Giacometti, Edward Hopper, Willem de Kooning, Mark Rothko, Alexander Calder, René Magritte, Giorgio Morandi entre outros, mas, de todos, nada se comparou à influência dos construtivistas. Segundo Mario Pedrosa, “o impacto da 1ª Bienal teve um caráter afirmativo quase de libertação para as inovações no campo estético e comportamental: o ambiente artístico está em efervescência, sumiu a modorra asfixiante. Os artistas começam a brigar por suas ideias, suas convicções estéticas”. Nesse rumo, os jovens artistas brasileiros militantes da abstração geométrica, já no ano seguinte à Bienal lançaram o Manifesto Ruptura, que trazia os princípios do novo movimento. Além da impactante mostra de arte internacional, a Bienal de São Paulo trouxe também uma exposição internacional de arquitetura, um festival de cinema, uma sala nacional de cerâmica e promoveu ainda um concerto de sonatas para violino e piano de autores nacionais.

Cartazes históricos da Bienal de São Paulo Foto: Clayton de Souza/Estadão

 2ª Bienal de São Paulo, considerada a mais importante de todas já realizadas, conhecida como a Bienal da Guernica, foi a que mais impacto exerceu sobre a arte e a cultura brasileiras. Suas salas apresentaram o cubismo, o futurismo e o neoplasticismo, além de alguns importantes protagonistas da arte moderna como Munch, Klee, Kandinski, Mondrian e Calder. Essa Bienal premiou os artistas Henri Moore (escultura) e Giorgio Morandi (gravura). Cabe uma citação especial sobre o artista Giorgio Morandi: Ao receber o grande prêmio de gravura da Bienal de São Paulo, o jornal italiano Corriere de Milano publicou uma pequena nota sem importância sobre a informação. Até então, Giorgio Morandi não era um nome realmente internacional, nenhum museu da Europa possuía suas obras e seu nome não era familiar sequer entre os críticos que participavam da Associação Internacional dos Críticos de Arte. Segundo Mario Pedrosa: “Sua pintura aparentemente simples, sem eloquência, sem grandiloquência, contrastava com a estética fascista que dominava na época e a pomposidade mussolinesca não admitia a sua pintura”. Sua obra foi reconhecida primeiramente no Brasil, exercendo grande influência por aqui, para depois ser reconhecida em seu lugar de origem. Segundo ainda Mario Pedrosa, “a 2ª Bienal de São Paulo foi a maior exposição que se fez no mundo durante a década”.

Exercendo influências profundas das mais variadas, as Bienais foram se sucedendo alternadamente, trazendo sempre as experimentações dos movimentos internacionais e inserindo a estética brasileira nessas incessantes transformações, ao passo em que proporcionava, em outro ponto altamente positivo, o contato dos artistas brasileiros com os críticos estrangeiros.

Vejo a Fundação Bienal de São Paulo em dois momentos distintos e extremamente importantes: a primeira fase, que acredito ser de 1951 até o final dos anos 1970 ou início dos 1980, como uma grande escola, onde a cultura brasileira bebeu e saboreou de todos os movimentos importantes internacionais, rompendo o seu isolacionismo e evoluindo na sua estética em direção a uma cultura de vanguarda, contemporânea, polêmica e diversa. De meados dos anos 1980 em diante, com a evolução da produção artística brasileira, denotando qualidade, diversidade e frescor, a Bienal passa a ser uma grande vitrine para a produção nacional e latino-americana.

Publicidade

João Carlos de Figueiredo Ferraz, presidente da Fundação Bienal de São Paulo Foto: Felipe Rau/Estadão

ossos artistas, ladeados nas exposições bianuais pelos grandes nomes da arte internacional, começam a mostrar suas virtudes e a ser reconhecidos pelas suas qualidades e competência. Nesse momento a Fundação Bienal de São Paulo passa a ter enorme importância para o reconhecimento da arte brasileira e latino-americana até então desconsiderada, trazendo ao Brasil grandes nomes da crítica internacional, diretores dos mais prestigiados museus de todo o mundo e importantes formadores de opinião. A partir de então, nossos artistas passam a ser convidados para exposições em instituições e museus internacionais importantes, as galerias que os representam começam a participar das grandes feiras internacionais e a arte latino-americana passa a ter visibilidade e reconhecimento.

Hoje em dia, poucas pessoas são capazes de dizer quantas exposições do tipo da Bienal são organizadas no mundo. Há centenas delas espalhadas pelos cinco continentes mas, seguramente, nenhuma equivale à Bienal de São Paulo, tanto por sua história, sendo a segunda mais antiga do mundo, quanto por sua tradição e pela profunda influência que exerceu, ao longo do tempo, na cultura do nosso país e do continente latino-americano. A importância da Bienal reside não apenas nas exposições que promove a cada dois anos mas, principalmente, na sua própria instituição. Apesar de deixarem marcas indeléveis, as exposições são passageiras, exercem suas influências e são sucedidas por outras mais arrojadas e polêmicas. Porém a instituição é definitiva, ela fica para contar e mostrar a história. Exemplo material disso é o seu arquivo histórico e documental. São documentos fundamentais da história da arte moderna e contemporânea, contendo todos os registros dessa extraordinária instituição. Trata-se, seguramente, do mais importante centro de pesquisa sobre arte moderna e contemporânea da América Latina, constituindo um dos maiores legados sobre a arte da metade do século XX para cá. O arquivo histórico Wanda Svevo é uma obra tão importante quanto as Bienais que o formaram e, por essa razão, acredito ser da nossa responsabilidade manter este arquivo tratado com toda tecnologia disponível para seu manuseio, fomentando pesquisas e consultas e favorecendo o acesso aos historiadores, para que haja uma melhor compreensão da arte do nosso tempo. E mais que isso, considerando o interesse por este arquivo, formado por cartas, textos, projetos, recortes históricos de jornais, fotos, vídeos das exposições e de artistas etc, pensamos em criar um espaço expositivo permanente onde tais documentos possam ser vistos, visitados continuamente, estimulando um projeto educativo ininterrupto, apoiado por bolsas de estudo que se proponham a analisar mais detidamente cada aspecto desta documentação.

Mas isso não é tudo. Apesar de seu passado glorioso, a Bienal não é só história e tem um futuro promissor pela frente. Cabe a ela sinalizar nas suas mostras os movimentos artísticos mais intensos e o que de mais instigante acontece nos cenários local e internacional, trazendo para nossa apreciação essas manifestações que acabam por oxigenar a cultura. Vivemos tempos arredios, de pouca introspecção, de pouca meditação. A comunicação, cada vez mais rápida, nos obriga a avaliações muitas vezes superficiais e banalizadas, e, por conta disso, a disposição do público e sua atenção à arte é cada vez mais fugaz, mais dispersa. Vivemos, como afirma Mario Vargas Llosa, a “Civilização do Espetáculo”, onde a pirotecnia das exposições se sobressai à sua poética, a informação visual se sobrepõe ao conteúdo filosófico, o olhar extasiado não se fixa e a memória não guarda. Este é o nosso desafio: escapar dessas armadilhas falsamente estéticas e apresentar aos visitantes da nossa Bienal um registro real e profundo do nosso tempo.

*João Carlos de Figueiredo Ferraz é presidente da Fundação Bienal de São Paulo

Leia o perfil de Figueiredo Ferraz na edição online do Aliás