A nevasca meia-boca

Ao assumirem o controle da tempestade de neve, os americanos a venceram por antecipação. E o que fazer com 48 latas de atum?

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Por Lee Siegel
Atualização:
NYC. A metrópole parou, mas só caíram 30 cm de flocos brancos Foto: STAN HONDA/AFP

Na semana passada, toda a região nordeste dos Estados Unidos foi dominada por algo que só pode ser descrito como catastrofismo eufórico. Os meteorologistas estavam prevendo algo que chamaram de “nevasca histórica”. Disseram que seria uma das cinco maiores nevascas da história documentada. Alguns disseram que seria a maior nevasca da história documentada. Um ou dois meteorologistas mais empolgados declararam que seria a pior nevasca de todos os tempos, com exceção da Era Glacial, é claro.

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Graças ao milagre digital, alguns canais da TV a cabo puderam projetar imagens de como seria essa nevasca monstruosa. Não eram bonitas. Meio metro, um metro, dois metros de neve. Carros cobertos e perdidos na brancura. Ruas desaparecidas. Casas isoladas do restante da civilização. Telhados desabando. Pessoas presas no súbito avanço da brancura congelante, caindo e sufocando. Ventos fortes carregando crianças e animais pequenos.

Nem é preciso dizer que, durante as 24 horas em que as previsões foram feitas, as pessoas lotaram as lojas, comprando comida e água para semanas, lanternas, pilhas, papel higiênico e cebolas. As cebolas estavam na lista porque a ideia era viver de sopa durante meses e meses, explicou um sagaz comentarista de TV. Vinho e cerveja também foram vendidos em boa quantidade.

Teve início a aterrorizante contagem regressiva para a tempestade, que vimos em incontáveis mapas digitais subindo rumo ao norte pela costa do Atlântico. A tempestade estava na costa da Carolina do Sul. Depois, na Carolina do Norte. Washington, a sede do poder político, registrava queda de neve. Na Filadélfia, onde a Constituição e a Declaração de Independência foram assinadas, os ventos ganharam força. Ondas castigavam as praias de New Jersey. Os hospitais verificaram o funcionamento de seus geradores. Bill de Blasio, prefeito de Nova York, que alertou numa entrevista coletiva que a tempestade seria “a maior da história da cidade”, fechou o metrô. O apocalipse estava chegando…

No fim, cerca de 30 cm de lindos flocos de neve caíram sobre Nova York. No meu jardim, nos arredores da cidade, 15 cm se acumularam. Uma brisa fria e agradável soprou a neve no rosto das crianças alegres. Ao final da terça-feira, quando deveríamos estar em meio a escombros gelados, a maior parte da neve nas ruas já tinha derretido.

O Twitter se agitou com gozações sobre políticos como De Blasio, que sucumbiram ao fervor apocalíptico. Mas na verdade não podemos culpá-lo, e às demais figuras públicas, pelas previsões de que o céu desabaria. Americanos adoram imaginar desastres. Trata-se de uma função do entorpecente otimismo do país.

Assim como os gregos da Antiguidade, que em suas tragédias retratavam sucessivos personagens destruídos pela paixão e fúria, exaltavam a razão e a Regra Dourada, os americanos, que acreditam que todo problema pode ser solucionado e há no fim de cada túnel uma luz patrocinada pelo American Express, adoram se atormentar com imagens de catástrofes. Duvido que haja outra civilização na história que tenha feito do apocalipse o mote do entretenimento popular como fazem os americanos. Seja num filme mostrando a Casa Branca dominada e destruída por terroristas, ou sobre a própria Washington sendo destruída por uma “bomba suja”, os americanos sempre buscam histórias e imagens dos próprios Estados Unidos se convertendo numa sensacional ruína.

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Parte da razão disso é a simples superstição. Imagine o pior e o pior jamais ocorrerá. Trata-se de uma forma de pensamento mágico, um dos passatempos nacionais dos americanos. Nessa lógica, a construção de um problema – o apocalipse, por exemplo – significa que a solução está logo ao alcance. Imagine um desastre, e em seguida arregace as mangas e mãos à obra para consertar o que estiver quebrado.

Mas acho que a mais poderosa motivação que nos leva a mergulhar nas cenas de iminente destruição é a questão do controle. Conforme ciência e tecnologia conquistam seguidos avanços incríveis, de curas para doenças a robôs e drones, os americanos estão se acostumando a controlar o mundo com o toque de um dedo. Logo será possível administrar a vida inteira com o smartphone. Imaginar desastres é uma função da ambição de alcançar o controle total sobre o ambiente.

Ao usar nossa própria vontade intelectual para construir o pior evento que poderia ocorrer conosco, estamos nos antecipando ao destino e à sorte, usurpando o papel desempenhado por eles na vida. Todos os modelos climáticos digitais, todas as impressionantes projeções de como seria a tempestade, todos os modelos computadorizados de qual seria o resultado – tudo isso é uma maneira de nos transformarmos em pequenas divindades. Não estamos apenas criando uma resposta para uma crise. Estamos criando uma crise sob medida.

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Conforme a Guerra Fria deu lugar a terroristas e células terroristas, ante os atos aleatórios de violência que ocorrem nas sombras entre os países a imaginação americana do desastre se tornou mais determinada e intensa. Ao encarnar nossos piores medos em panoramas produzidos pela tecnologia e contidos por ela, podemos controlar esses medos como controlamos nossa tecnologia. Pode ser absurdo. Mas é um grande consolo. E não há nada de absurdo em buscar um consolo, desde que isso não nos deixe cegos para a realidade.

Minha própria explicação para a mania de controle dos americanos faz com que eu me sinta o mestre de meu ambiente mais próximo. Agora só preciso descobrir o que fazer com aquelas 48 latas de atum. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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