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'A Origem das Espécies', de Charles Darwin, ganha nova edição

Obra fundamental para compreender a teoria da evolução tem polêmico texto integral de sua primeira edição, de 1859, publicado no Brasil

Por André Cáceres
Atualização:

“Se chegar o dia em que a ciência estiver pronta para se familiarizar ao homem e se colocar em carne e osso, o poeta emprestará seu espírito divino para auxiliar a transfiguração e dará boas-vindas ao ser então produzido, como um genuíno parceiro da humanidade.” As palavras são do escritor americano William Wordsworth (1770-1850), que viveu em uma época de grandes descobertas, mas infelizmente não viu a ciência produzir uma de suas mais importantes teorias: a da evolução. O leitor brasileiro, porém, entrará em contato com o pensamento de Charles Darwin com o lançamento de A Origem das Espécies, pela Edipro. 

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O naturalista britânico Charles Darwin 

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Com revisão técnica de Nelio Bizzo, professor da USP e fellow da Royal Society of Biology de Londres, a tradução de Daniel Moreira Miranda parte da 1.ª edição, de 1859, antes das mudanças que Darwin foi obrigado a fazer e da supressão de trechos importantes como o que trata da influência da seleção sexual entre os seres humanos. “Ele já tinha uma certa projeção científica”, pondera o professor Bizzo em entrevista ao Aliás. “Quando lança um livro indo contra os principais cientistas e líderes das universidades anglicanas, ele colide frontalmente com o establishment da época.”

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Não é para menos: Darwin revolucionou a compreensão do surgimento das espécies e da variedade da vida. O pensamento criacionista vigente que sua teoria desbancou se assentava em baluartes filosóficos de Platão e Aristóteles: a scala naturae (uma hierarquia equivocada entre as espécies, da mais simples à mais complexa, que o próprio Darwin incorpora em alguns momentos); a teleologia (noção de que a natureza é guiada por um propósito); o fixismo (ideia de um cosmo em equilíbrio estático); e o essencialismo (que vê os indivíduos de uma espécie como pequenas variações em torno de um padrão único essencial).

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“Darwin teve conhecimento de Aristóteles por terceiros. Não tinha consciência de que estava demolindo um edifício com alicerces aristotélicos”, explica o professor Bizzo. “Ele guarda a parte mais sofisticada do argumento justamente para o final, quando discute os órgãos que não têm utilidade. Isso é absolutamente inexplicável tanto pela ótica aristotélica pura quanto pela questão que a igreja adotou do Aristóteles de Tomás de Aquino, cristianizado.”

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Muito do que ajuda a corroborar a evolução ainda não era conhecido, como a deriva continental (continentes em movimento constante) e a genética mendeliana (ele admite que a biologia da época era ignorante quanto às leis de hereditariedade), o que torna a teoria de Darwin ainda mais impressionante. Até hoje, porém, sua obra suscita equívocos que devem ser mitigados com essa reedição. Por exemplo: o ser humano não veio do macaco, como se costuma dizer. Não existe uma espécie chamada “macaco”. Assim como chimpanzés, bonobos, gorilas e outros, nós somos primatas e viemos todos de um ancestral comum. Outro erro usual é pensar que a evolução é um processo linear ou que tenha finalidade. Os diagramas cladísticos, que explicam as relações de parentesco entre espécies, são árvores genealógicas, não linhas sucessórias, uma vez que todas as formas de vida estão adaptadas aos respectivos nichos ecológicos. 

A extinção, hoje um conceito estabelecido, estava em debate, pois o registro fóssil não deixava claro se os animais desapareciam. “A ideia de extinção como processo permanente teve em Darwin a principal referência”, diz Bizzo. A teologia não aceitava a ideia de extinção, pois criar uma espécie apenas para dizimá-la seria um indício da falibilidade divina. Hoje se sabe que 99% das formas de vida que já habitaram a Terra foram extintas, seja pela morte de seus indivíduos ou porque eles se modificaram com o tempo, originando outras espécies. 

Com honestidade intelectual, Darwin dedica vários capítulos às controvérsias em sua teoria. O que surpreende é que os argumentos usados até hoje por criacionistas, negacionistas da evolução e defensores do design inteligente (uma variante pseudocientífica do criacionismo com pretensão de chegar aos livros didáticos) já haviam sido rebatidos na primeira edição de A Origem das Espécies. “Confesso que parece ser um absurdo no mais alto grau supor que o olho (...) possa ter sido formado pela seleção natural”, escreve Darwin sobre a complexidade irredutível, para em seguida explicar longamente como os estágios intermediários necessários para a formação de um olho ou uma asa conferem vantagens seletivas a seus possuidores. Polvilhado de exemplos de “meios olhos” e “meias asas”, não deixa dúvida a respeito do surgimento de órgãos complexos por passos graduais.

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A evolução é tratada como fato há décadas. "Teoria" é o nome que se dá às ideias científicas que conquistam o mais alto grau de corroboração, como a relatividade geral de Einstein. O que não significa, é claro, que não possam um dia ser derrubadas, mas apenas por outra teoria que explique melhor os mesmos fenômenos. Ainda há, porém, quem não acredite nisso. A assustadora quantidade de pessoas que nega fatos como a evolução, o aquecimento global, micróbios como causa de doenças e até o formato da Terra demonstra que a divulgação científica se faz mais necessária que nunca. Em 2017, ocorreu a 1.ª conferência de terraplanistas nos EUA; no ano anterior, foi fundada a Sociedade Brasileira do Design Inteligente. Carl Sagan já previa isso no livro O Mundo Assombrado pelos Demônios (1995): “A ciência desperta um sentimento sublime de admiração. Mas a pseudociência também produz esse efeito. As divulgações escassas e malfeitas da ciência abandonam nichos ecológicos que a pseudociência preenche com rapidez.”

Nesse cenário, a reedição de A Origem das Espécies – e a obra de divulgadores como Stephen Hawking, Carlo Rovelli e Neil deGrasse Tyson – é uma ferramenta essencial de propagação de conhecimento. “A divulgação científica presta um grande serviço quando dialoga com as posições das pessoas, eventualmente levando novas informações”, acredita o professor Bizzo. “O debate é saudável quando parte de posições não dogmáticas.”

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