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A picada do fim

Ao se comparar à jararaca, Lula e sua eficiente retórica palanqueira não deixam dúvida: é ameaça dura disfarçada de prosa caipira

Por Sérgio Rodrigues
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“Se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça, bateram no rabo, e a jararaca está viva como sempre esteve.” A curiosa frase encerrou o discurso de defesa que Lula, cercado de militantes, fez na sexta-feira à tarde na sede do PT em São Paulo, após depor na Polícia Federal. Sua posição como punchline, ou aquilo que no vocabulário fora de moda da retórica se chama peroração, alia-se à reconhecida habilidade palanqueira do ex-presidente para não deixar dúvida de que o ofídio foi posto ali de propósito. Nada a ver com os constrangedores improvisos verbais de Dilma Rousseff: Lula quis se comparar a uma cobra. Mas por quê?

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Ofídios, animais associados à peçonha, à índole agressiva e à capacidade de atacar à traição, não gozam de boa reputação na língua popular quando se trata de metáforas. Embora a carga semântica do vocábulo “cobra” tenha uma margem de ambiguidade (uma pessoa ardilosa e falsa pode ser chamada de cobra, mas quem é bamba em determinada atividade também), o mesmo não se dá com a jararaca, cujo único sentido figurado é francamente negativo: “pessoa má, traiçoeira ou geniosa”, registra o Houaiss. Não falta sequer o agravante do sexismo: a mesma fonte acrescenta que a expressão se aplica principalmente a mulheres.

A palavra de origem tupi é quase tão antiga quanto o Brasil: data de 1560, quando o padre José de Anchieta tornou-se o primeiro a empregá-la numa carta. Designa diversas serpentes do gênero Bothrops nativas destas terras, em geral de coloração parda com manchas escuras triangulares, todas extremamente venenosas, que os índios já temiam quando os portugueses aprenderam a respeitá-las. Segundo o estudioso baiano Teodoro Sampaio, que no início do século 20 publicou o referencial O Tupi na Geografia Nacional, o sentido original do tupi yara’raka era “que colhe ou agarra envenenando”. Encontrar uma delas de mau jeito, naquele tempo, era o fim da picada – ou a picada do fim. Chamando o bicho de Geraráca, um historiador primitivo registrou em 1576 que a vítima de seu veneno estava perdida, pois “o mais que dura são vinte e quatro horas”.

Podemos começar a buscar uma explicação para o ofídio de Lula na profundidade das raízes que a jararaca deita no imaginário brasileiro. O grande talento retórico do ex-presidente, de corte populista e inegavelmente eficiente, sempre foi o de fazer soar esse tipo de corda. Se a população do País é hoje maciçamente urbana, as marcas da glória sinistra da jararaca são indeléveis em nossa cultura, registradas em clássicos como Vidas Secas, de Graciliano Ramos (“O inferno devia estar cheio de jararacas...”) e Macunaíma, de Mario de Andrade (“Com a jararaca ninguém não pode não”). Ao mesmo tempo, trata-se por isso mesmo de um bicho perseguido pelo poder do homem, ou seja, uma vítima – como Lula se apresentou. Mas uma vítima perigosa que só deve ser desafiada com um golpe definitivo (“na cabeça” e não “no rabo”), do contrário se voltará para destruir o desafiante. A jararaca de Lula é uma ameaça dura disfarçada de prosa caipira.

SÉRGIO RODRIGUES É JORNALISTA, ESCRITOR E CRÍTICO LITERÁRIO. AUTOR DO ROMANCE O DRIBLE (COMPANHIA DAS LETRAS)