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A roda da história

Após criar expectativas, a revolução egípcia passou a ser associada a apertar os cintos

Por Aldo Cordeiro Sauda e Marcia Camargos
Atualização:
Ramadan lanterns, known as "fanous", made in the likeness of Egypt's President Abdel Fattah al-Sisi are displayed for sale at a market in Cairo July 7, 2014. REUTERS/Amr Abdallah Dalsh (EGYPT - Tags: POLITICS SOCIETY RELIGION) Foto: AMR ABDALLAH DALSH/REUTERS

Há um ano, as ruas e praças do Egito eram tomadas por aquilo que muitos viam como o ápice do processo iniciado pela queda do ditador Hosni Mubarak, em 2011. Um novo presidente, dessa vez o islamista Mohamed Morsi, acabava de ser derrubado. Passados 12 meses, uma espécie de conformismo parece sobrepor-se ao ímpeto revolucionário. As massas que cotidianamente tomavam os espaços públicos desapareceram do mapa. Enquanto isso, as raras mobilizações são esmagadas com violência ainda maior que nos dias de Mubarak ou Morsi. Como se não bastasse, elas agora enfrentam a antipatia dos próprios habitantes, que antes saudavam e aplaudiam os revoltosos.

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Sinal evidente da “normalização” política foi a ausência de qualquer reação coordenada ao corte nos subsídios à gasolina, tema que costuma gerar sérias tensões sociais. Anunciada algumas horas após sua implementação, a medida elevou o preço do combustível em 78%. Assim mesmo, fora alguns protestos isolados de taxistas, pouco se ouviu das ruas.

Apesar das pressões do FMI, sob o argumento de que as subvenções oneram as finanças nacionais, a gasolina, o gás de cozinha e a farinha de trigo, componente da principal fonte da dieta nacional, têm seu preço controlado pelo Estado. A última tentativa de eliminar o auxílio-pão, em 1977, terminou em uma rebelião maciça e mais de 70 mortos, levando a regime a recuar.

Nesse contexto, é emblemático o fato de que, após três anos de instabilidade política, o governo corte um subsídio de forma tão tranquila. Segundo o primeiro-ministro, Ibrahim Mahlab, a iniciativa seria “o primeiro passo na reforma econômica” que muito provavelmente atingirá os subsídios aos alimentos. Em um país onde metade da população sobrevive com menos de R$ 5 por dia, isso significa condenar milhões à desnutrição e à fome.

Explicações políticas para a atual força do governo não faltam. A repressão desencadeada por Abdel Fatah al-Sisi, que de diferentes maneiras dirigiu o país no último ano, constitui a principal delas. Nada desdenhável foi a ferocidade desse general, que se abateu sobre a Irmandade Muçulmana, maior partido político do Egito. Além de banida, teve seus ativistas massacrados em plena luz do dia, logo ao primeiro mês da posse. Só em 24 de março, 528 de seus membros foram sumariamente condenados à morte pela Justiça. Frente a tais ameaças, quem se aventura a sair para protestar?

A repressão, contudo, não se resumiu aos islamistas. Diversas organizações seculares com programas democráticos, a exemplo do 6 de Abril, o mais importante agrupamento de jovens no país, foram postas na ilegalidade sob a acusação de promoverem o terrorismo. Figuras destacadas do movimento antiditadura, como Alaa Abd el-Fattah e Mahinour el-Masry, opositores ferrenhos à Irmandade, também terminaram presos e condenados.

 Embora contundente, o peso da repressão não decifra por inteiro o atual momento político. A forma com que Sisi chegou ao poder, respaldando-se na legitimidade da revolta popular, talvez carregue uma explicação mais plausível. Trata-se, portanto, de um erro grave reduzir as mobilizações que derrubaram Morsi a um mero prolongamento do processo que depôs Mubarak. É inegável que o ingrediente revolucionário existia. Porém, entre as engrenagens que impulsionaram a queda da Irmandade, havia uma igualmente perceptível, porém mais bem orquestrada - aquela que conclama o retorno à “ordem”.

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Fica claro que a ausência de organizações capazes de canalizar as demandas por liberdade e justiça, em ganhos sociais tangíveis, afetou o humor dos egípcios. Depois de batalhas sem trégua, a situação geral é, hoje, pior que no período Mubarak. Ou seja, o movimento revolucionário pecou ao ignorar problemas sociais de fundo. Batia-se com muita clareza pela reformulação das leis eleitorais, e, no entanto, pouco dizia sobre escolas, saúde e moradia. Já os sindicatos, apesar de seu caráter de massa, restringiram-se a reivindicações pontuais, sem nenhuma articulação nacional digna do nome, ou qualquer programa unitário mínimo.

Assim, a revolução, da qual se esperavam melhorias visíveis e imediatas no estado catastrófico das coisas, passou a ser associada ao ato de “apertar ainda mais os cintos”. No país em que a indústria do turismo representa a principal receita, a imprevisibilidade condenou hotéis e museus às moscas. Em tal cenário, o enterro do sonho de mudanças surgia como a única alternativa de juntar alguns trocados.

Mas a política em tempos de revolução é sempre ardilosa. As promessas de desenvolvimento garantidas pelo general confrontam-se com a realidade de uma nação falida. Se a volta à ordem exige, como contrapartida, multiplicar os custos do transporte público e da alimentação, o regime perderá o encanto. A capacidade dele de impor, sem entraves, tal programa econômico, paradoxalmente tece uma verdadeira armadilha para Sisi. Caso escolha esse caminho, poderá destravar, contra a própria vontade, a roda da história.

*Aldo Cordeiro Sauda é cientista político; Márcia Camargos é historiadora com pós-doutorado pela USP

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