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Água deu, água leva

Vamos ter de mudar hábitos que vão do banho ao modo de matar a sede, da limpeza da casa às plantas que podemos ou não ter

colunista convidado
Por José de Souza Martins
Atualização:
Tempos turvos. Raciocinamos como se o calorão fosse só um convite ao refresco Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

As mudanças climáticas que nos alcançam, especialmente a falta de chuvas e a escassez de água, são dramáticas nas sociedades e nos grupos sociais que não desenvolveram uma cultura que lhes permita administrar a complicada relação da sociedade com a natureza. Diferentemente do que pode ocorrer com as populações urbanas, as populações agrícolas administram cotidianamente sua relação com o clima e dispõem de uma cultura rica de informações que lhes possibilita interpretar as variações climáticas e as municia com critérios e procedimentos para lidar com as adversidades naturais até muito tempo antes das ocorrências mais graves. Pode não fazer chover, mas ensina a lidar com falta de chuva. 

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Já vi coisas notáveis que indicam como a crescente urbanização priva os habitantes das cidades do capital cultural necessário a uma atitude prudente e positiva em face das variações do clima. No sul do Pará, numa época em que uma cidade planejada e recém-construída era afligida anualmente pelas águas do rio, perguntei a moradores da roça por que seus ranchos ficavam a salvo da inundação. Observavam o comportamento de determinada variedade de formiga, que faz seu formigueiro na barranca do rio. Quando as formigas começavam a migrar com os ovos para novo formigueiro, mais alto, os moradores da região sabiam que haveria enchente e o nível do rio ficaria abaixo da nova toca. Ou os lavradores que preparam a terra na época costumeira, mas não semeiam quando intuem que as chuvas não cairão na época certa. Uma indicação comum e corrente no Nordeste é a da chuva no dia de São José, 19 de março. Se chove, o ano será bom para a lavoura porque choverá durante o ano. Falta de chuva nesse dia é indício de longa estiagem, o que sugere decisões quanto ao que e quando plantar. Isso vale também para outras cautelas quanto ao uso da água existente e quanto à regulação do uso do que de colheita anterior ainda está no paiol. Há saberes centenários e até milenares sistematizados numa climatologia popular, numa meteorologia dos simples e numa agricultura do povo. 

Mesmo as populações de origem rural que se transferiram para as cidades têm esse saber ancestral corroído e cancelado no curto tempo de uma geração. Entram no mundo fantasioso de que na cidade tudo pode ser comprado. Crianças já não sabem que galinha se cria no galinheiro e não no supermercado, que feijão precisa ser plantado para ser colhido, que o leite é tirado do úbere da vaca. Tudo parece reduzido ao fabricar e comprar. Mesmo a água parece mágica da torneira. Basta abrir. Isso pode acontecer também no meio rural, nas áreas alcançadas pela modernização e pelo progresso. Vi num povoado do sertão da Bahia, em área arenosa e quentíssima, a torneira aberta, jorrando sobre a areia a água de um poço artesiano comunitário construído pelo governo, como se fosse um perene rio encanado. 

Já tomei água pura e cristalina do Rio Tamanduateí na região metropolitana de São Paulo. O rio nasce numa gruta de um bosque do município de Mauá. Eu participava de uma excursão educativa da Sabesp ao longo do rio, desde a foz no Tietê. Os técnicos mostravam o horror de córregos e canais poluídos despejando o líquido escuro sobre o rio principal. Não muito longe da nascente, em área servida por coleta domiciliar de lixo, pessoas atravessavam a rua para jogar o lixo na barranca do rio. A cerca de 100 metros da nascente, o primeiro poluidor, o dono de uma fabriqueta de blocos de concreto, jogava os resíduos na água limpa que ele poderia beber, não bebia e com a sujeira não permitia que outros bebessem.

Situações de crise são boas referências para compreender mudanças sociais e mudanças de mentalidade que poderão induzir a população urbana a recriar padrões de civilidade no trato da natureza. É que mesmo as alterações climáticas interferem no padrão dos relacionamentos sociais, nos valores de conduta e no modo como a sociedade se organiza e funciona. O Brasil está mudando. O que ninguém esperava é que a mudança climática também entrasse no palco e reivindicasse um papel de protagonista de mudanças sociais. Qualquer um pode compreender que os costumes vigentes, influenciados pelo clima ameno e a água abundante em boa parte do território brasileiro, estão perdendo o sentido. Estamos no limiar de novos hábitos que vão do banho ao modo de beber água, da limpeza da casa ao tipo de plantas que poderemos ter no jardim ou em vasos. A própria concepção de nojo está ameaçada. O nojo já deveria ter se tornado descabido em face do consumo de água que é, no fundo, esgoto filtrado e tratado. Teremos que aprender que com água não se brinca, que o que emporcalhamos hoje beberemos amanhã. 

A mudança de hábitos e de comportamento será difícil. Nestes dias de calor escaldante, uma das moças do tempo, na TV, anunciou com indisfarçável ar de felicidade que teríamos um lindo fim de semana de sol. Raciocinamos ainda como se a falta de chuva e de água fosse apenas um convite para ir à praia. 

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José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de Uma Sociologia da Vida Cotidiana (Contexto)

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