A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida, professaria Vinícius de Moraes ao ler A Estrada Verde, da irlandesa Anne Enright. E completaria que para fazer um romance com beleza é preciso de um bocado de tristeza, porque senão não se escreve nada não.
Em sua mais recente obra, Anne Enright retoma os dramas familiares como o de seu O Encontro, prêmio Man Booker Prize de 2007, para contar sobre os momentos da vida que ninguém compartilha nas redes sociais. Esqueça os almoços festivos, a foto apinhada de gente feliz, as curtidas em forma de coração e todos os emoticons de sorrisos. A irlandesa de 54 anos explora de maneira melancólica a relação conflituosa e, ao mesmo tempo amorosa, da família Madigan, preocupada mais em revelar o sentimento não dito, a verdade não expressa. É como se existisse um belo lago em dia de sol para ser registrado e a autora optasse por mostrar a parte sombria que existe sob a água.
Enright usa também da ficção para colocar o leitor sob a ótica de como a população da Irlanda viveu os anos que antecederam uma das maiores crises dos últimos anos. A opção de parte de seus cidadãos migrarem para grandes capitais de outros países, mais atrativas segundo olhar da cultura local, a dificuldade de a geração economicamente ativa sobreviver à falta de emprego, além de tratar da principal causa para o problema financeira de 2010, a especulação imobiliária, quando meia dúzia de empresários ganhou muito dinheiro com a supervalorização de imóveis e depois o país quebrou.
“As pessoas dizem que escrevo sobre família o tempo inteiro, mas, de fato, eu coloco as pessoas nesse formato, ou uso esse formato de escrita para tratar sobre verdades profundas. Estou mais interessada em falar sobre separação e conexão, desconexão e amor”, explicou Enright em entrevista ao jornal britânico The Guardian.
A Estrada Verde é narrado em terceira pessoa, diferentemente d’O Encontro, que tem a história contada por Veronica, que descreve os problemas familiares a partir do suicídio de Liam, o irmão, de um total de 12, com quem tinha mais afinidade. No mais recente romance, a personagem central é Rosaleen, a matriarca da família Madigan, uma mulher amargurada, de família rica e que se casou com um homem de classe social inferior. Apesar de à época ter dado de ombros às normas padrões de um povoado tradicionalista como o do condado de Clare, na Irlanda, ela colocará esse conflito em questão em diversos momentos da vida.
O marido, Pat Madigan, é um sujeito de hábitos simples e passa de lado na trama. Mas é o cara com quem Rosaleen teve quatro filhos: Constance, Dan, Emmet e Hanna. Na primeira parte do livro, os capítulos saltam em décadas. Em 1980, a protagonista entra em depressão quando Dan anuncia na mesa de jantar que irá se tornar padre. A crise inicial é narrada sob o ponto de vista de Hanna, uma criança na época, incumbida de ir até a farmácia do tio buscar algum remédio que cure a dor de saber que um filho não gerará descendentes.
Nos anos seguintes, os filhos vão deixando o condado de Clare na tentativa de se tornarem independentes. Em 1991, Dan passa a encarar seu conflito sexual. Já desistiu do celibato, vive com uma namorada dos tempos de adolescente em Nova York, mas tem a primeira paixão por outro homem em um período que o vírus da aids se dissipa no mundo inteiro.
Constance, a primogênita, casou-se com um marido rico do setor imobiliário e sofre com os dilemas de uma dona de casa. Acredita não ser valorizada o suficiente por quem está a sua volta e vê a possibilidade de o câncer de mama torná-la visível. Hemmet passou trabalhar em missões humanitárias e, em 2002, presta assistência à miserável população de Mali, no continente africano, acompanhado da então namorada Alice. Hanna, a caçula, é atriz desempregada, casou-se com um diretor em Dublin, cuida do filho ainda bebê, ao mesmo tempo que luta contra o alcoolismo.
Solitária e com a noção que as memórias afetivas estão caindo aos pedaços junto com o que existe na casa, viúva, Rosaleen decide acrescentar uma informação aos tradicionais cartões de Natal que envia para os filhos no final do ano: o imóvel da família será colocado à venda. É quando se inicia a segunda parte do livro, o momento do reencontro. Nenhum dos filhos ainda se achou na vida e isso aflige a matriarca, que tem um carinho por todos, apesar de só demonstrar amor por Dan. O retorno dos quatro filhos ao lar da infância trará velhos conflitos à tona e novos dramas nascerão a fim de reestabelecer o amor entre os Madigans.
*João Prata é jornalista
A Estrada Verde Autora: Anne EnrightTradução: Tereza BettinardiEditora: Companhia das Letras 256 páginas R$ 49,90