Um inventário dos últimos cem anos acaba de ser organizado pelo poeta e escritor Marco Aqueiva. Trata-se de 1917-2017 – O Século sem Fim, antologia de narrativas ficcionais caleidoscópicas. O leitor pode pensar que está diante de uma ostensiva homenagem ou estudo sobre aquele outubro russo em 1917, e como seus desdobramentos nos parece hoje, mas não está. Claro, a tomada bolchevique permeia vários pontos das narrativas reunidas, é o gatilho e o pretexto para se olhar o século em perspectiva, mas o mérito do organizador e seus convidados é a fuga do lugar comum, das obviedades.
Como Aqueiva explica, em sua apresentação ao livro, “um acontecimento histórico é sempre uma ficção quando narrado novamente”, ou ainda, quando explica o continuum da História e convida o leitor a ser o juiz da veracidade e da ficção daquilo que decorreu em todos os âmbitos, em todo o mundo, que se desfaz e se refaz.
Sendo assim, o critério de cada narrativa passa a ser o lugar atemporal, fugidio, etéreo e pessoal de cada indivíduo, pois que o lugar da memória não é um coletivo de fatos amontoados ou catalogados, mas uma teia transversal a qualquer lógica, que empala as entranhas do que seja racional ou passional.
Assim sendo, entre os 21 autores convidados, Ademir Demarqui abre o volume encarnando um velho dono de antiquário, de hábitos profissionais pouco defensáveis, que topa, ao acaso, com uma figura muito em voga nas crônicas policiais paulistas e com quem vive uma relação bandida adornada de relíquias macabras (não darei spoiler).
Carlos Felipe Moisés, poeta falecido pouco após o lançamento deste livro, imbui seu narrador da devoção e dedicação escancarada às obras de Mário de Andrade e Fernando Pessoa. Na incursão do autor pelas estantes de uma Universidade do Texas, descobrimos que os dois poetas teriam trocado algumas cartas ao longo do segundo semestre de 1917.
A minúcia de Moisés na construção epistolar traz um cuidado estilístico que vai do Português castiço a notas de rodapés nem sempre reais, mas deliciosamente pensadas. José Antonio Martino explora a mais controversa crônica do catolicismo, as visões de Nossa Senhora de Fátima, confrontando a dialética sublime vs. grotesco num conto em que um menino elefante só pode ser devidamente aceito no seio familiar se um milagre for operado, ou passará a vida trancafiado, como um Kasper Hauser menos afortunado pela aparência.
Além das figuras da revolução, outro personagem recorrente em várias das narrativas é o zíper, invenção que, no conto de Luiz Bras (será ele mesmo?), vira metáfora da despersonalização que a modernidade operou em cada indivíduo. Parece que estamos diante da leitura de um cartão perfurado que nos conta sobre nosso próprio Apocalipse do devir. Na escrita de Fátima Brito, O Landwherkanal desemboca no Viaduto do Chá, enquanto Trotski e Lenin prestam loas a Rosa Luxemburgo, numa narrativa sensível na devida medida. Micheliny Verunschk, já importante poeta e agora premiada prosadora, nos transporta para o Theatro Municipal em noite de récita modernista. Para nostálgicos de Bandeira e cia., Manoel Herzog visita sua Santos, cruzando passado e presente na linhagem de Saturnino de Brito e sua engenharia visionária.
Talvez, Nathan Sousa derrape um pouco no didatismo excessivo em sua carta de um poeta piauiense destinada aos leitores do futuro, na qual tenta dar ao leitor a noção de uma Teresina em fins da década de 1910, ainda precária e isolada dos grandes polos da União. Mas sua precisão histórica e seu manejo da escrita fazem interessante contrapeso. O próprio organizador, Marco Aqueiva, faz coro, pousando no olho das vanguardas históricas da arte, ao lado de Picasso, Cocteau e Apollinaire, em meio à verve parisiense.
Gostaria de poder citar um por um dos escritores reunidos, que formam uma noção de conjunto, homogêneo como raramente se vê em antologias. Direi apenas que é de se dar nota sobre a escrita de Paulo César de Carvalho, que em sua contribuição conjumina procedimentos experimentais, como no monólogo de Molly Bloom, ao jogo polissêmico que confere múltiplos significados e possibilidades visuais ao léxico, algo próprio da poesia concreta, por exemplo.
E é exatamente o que Marco Aqueiva reuniu: uma polissemia que examina os limites do conceito de tempo e de espaço, ao mesmo tempo que privilegiou uma estética rigorosa ao compilar o volume. Uma estética que convida o leitor a olhar para si como pó de um século, como pivô de fatos sejam consumados ou somente almejados. No fim, o que fica é a questão inevitável: quanto de verdade pode haver na miserável ficção de nosso cotidiano? 1917-2017 – O Século sem Fim não é uma obra que dê respostas precisas, mas certamente acende várias velas na câmara obscura da História. *É poeta e ensaísta, é mestre e doutorando em estética e história da arte pela USP. Autor de, entre outros, 'Corpocárcere' e 'Zero nas Veias' (Poesia), e 'Cinematographos de Guilherme de Almeida' (Antologia)