Após 70 anos, romance de Albert Camus diz muito sobre a política atual

Quem lê 'A Peste' se depara com o cenário dos noticiários contemporâneos

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Por Redação
Atualização:
Cena da peça 'A Peste', baseada no livro de Albert Camus e dirigida por Neil Bartlett Foto: Alex Brenner/Arcola Theater

A Peste contamina o clima político moderno: quem lê o romance de Camus 70 anos após sua publicação “tem a sensação de estar assistindo ao jornal das dez”. Em meio ao avanço da xenofobia e da revolta populista, a literatura da chamada “meia-noite do século” volta a ser cultuada. Entre 1930 e 1950 – enquanto imperialismo, fascismo e stalinismo colidiam mundo afora –, os pesadelos da humanidade foram violentamente redefinidos por escritores que presenciaram a maior das guerras, os maiores dos crimes e, por fim, o uso da maior arma já produzida pelo homem. Romances distópicos, como 1984, de George Orwell, voltaram a despertar a atenção de grande número de leitores que tentam estabelecer paralelos entre o presente e o passado, em busca de pistas sobre o que fazer agora. Para o diretor teatral britânico Neil Bartlett, um dos livros desse período tem particular importância: “Infecção, invasão, pânico, fronteiras fechadas, pode até ser um romance clássico, mas, relendo-o hoje, volta e meia fico com a sensação de estar assistindo ao jornal das dez”.

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A Peste, de Albert Camus, se passa em Orã, no litoral da Argélia, uma cidade feia e empoeirada que, segundo seu narrador, cresceu dando as costas para o mar. O romance tem início quando o protagonista, o médico Bernard Rieux, começa a encontrar ratos mortos por toda parte. Não tarda para que os seres humanos também adoeçam e a cidade, posta em quarentena, seja isolada do restante do mundo. Cortam-se as relações familiares, amorosas e de amizade que os moradores tinham com pessoas de fora de Orã.

Na cidade, toda casa em que alguém tenha sido infectado é igualmente colocada em quarentena. Em pouco tempo, as vítimas fatais chegam, diariamente, às centenas. No cemitério, os enterros são realizados às pressas, com portões fechados. Sobrevêm os saques e a violência. Com os cadáveres se amontoando, instaura-se um clima de desolamento e resignação.

Albert Camus, escritor e filósofo argelino, autor de 'A Peste', que completa 70 anos Foto: The Economist

Camus escolheu Orã por ser uma cidade como outra qualquer, o que lhe permite universalizar o sofrimento experimentado por seus moradores. Na montagem de Bartlett, atualmente em cartaz no Arcola Theatre, em Londres, o artifício toma a forma de um cenário despojado, onde se veem apenas duas mesas e algumas cadeiras. A epidemia é descrita com frieza, com as mesas dispostas de maneira a sugerir uma coletiva de imprensa macabra. Posteriormente, as mesas são reposicionadas, transformando-se em leito de hospital. A generalização afeta agudamente o leitor, uma vez que, enquanto a maior parte das obras do cânone distópico se concentra nos instrumentos do autoritarismo, A Peste se volta para a reação das pessoas numa situação em que parece não haver saída possível.

Ao longo da narrativa, Rieux se desincumbe de suas obrigações com profissionalismo e uma indiferença crescente para com o destino de seus pacientes. A realidade mórbida do dia a dia da pestilência torna inevitável o distanciamento físico e emocional entre médico e paciente: o sofrimento sem fim entorpece os sentimentos. Além disso, a mulher de Rieux, que se encontra fora da cidade, está morrendo, embora sua doença não tenha nada a ver com a epidemia em curso. O clímax vem quando Rambert, um jornalista irrequieto que por acaso está em Orã quando a cidade é posta em quarentena, vê-se diante da oportunidade de escapar e prefere ficar para trabalhar com os amigos e lutar contra a peste.

Por fim, a epidemia passa e Orã volta a abrir suas portas para o mundo. Nas últimas páginas do livro, o narrador lembra ao leitor que, enquanto festejam, os moradores da cidade estão esquecidos de que “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada”, alertando ainda que “viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.

Haverá quem sustente que esse dia chegou, ou está nascendo. Escrito como alegoria da vida em Paris sob a ocupação alemã, o romance de Camus não é um close-up do mal ou da dominação, servindo antes como guia para o sofrimento e o desespero numa crise incontrolável. Daí ser uma das obras de maior impacto dentre as publicadas no século passado. A futilidade dos esforços de Rieux talvez fale alto aos que receiam que, tendo sucumbido à revolta e à iconoclastia, muitos eleitores já não deem valor às boas ideias. De uma hora para a outra, milhões de pessoas voltam a consultar seus passaportes e se perguntam onde e quando serão bem-vindas. O receituário tradicional, composto de fatos, argumentos racionais e da disposição para compreender o outro, serve apenas para sublinhar a impotência das atitudes íntegras e sinceras. Para esse mal ainda não se conhece antídoto.

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