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Arundhati Roy retorna à literatura 20 anos depois de vencer o Man Booker Prize

Escritora indiana foi premiada com 'O Deus das Pequenas Coisas' em 1997 e agora publica 'O Ministério da Felicidade Absoluta'

Por Paulo Nogueira
Atualização:

Em 1997, com o romance de estreia O Deus das Pequenas Coisas, a indiana Arundhati Roy despontou como uma aurora boreal no céu da literatura planetária. O livro embolsou o Man Booker Prize, vendeu até ontem 10 milhões de exemplares e virou um clássico moderno. 

A escritora indiana Arundhati Roy Foto: Chiara Goia/The New York Times

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Pois bem: quando legiões de leitores salivavam pelo segundo romance, Roy deu uma banana para a ficção e se embrenhou até às clavículas no ativismo político e na não ficção (mais de dez obras). Com o novo século, a autora operou uma guinada ainda mais radical. Os atentados do 11/9 suscitaram nela uma epifania intelectual. Mais ou menos como a de Christopher Hitchens, que, deixando o papel de guru de uma esquerda cosmopolita e literata, formulou o conceito de islamofascismo e defendeu a invasão do Afeganistão e do Iraque. Roy foi na direção oposta – e botem antípoda nisso. 

Ela doou boa parte do dinheiro do best-seller (só o primeiro cheque foi de 1 milhão de dólares), conviveu na selva com uma guerrilha maoista (sim, nesta altura do campeonato!) e parou no xilindró por causa dos protestos contra a construção de uma barragem (é verdade que por apenas um dia e cem reais de multa). Obviamente, Roy não concorda com o aforismo de Borges, de que “a política é uma das formas do tédio”.

Agora, 20 anos depois, regressa à literatura com O Ministério da Felicidade Absoluta – título agridoce para uma obra cuja capa é uma lápide. Como o primeiro romance, também este enreda o pessoal e o político numa narrativa não retilínea, só que num painel de muito maior escala, abrangendo meio século e um amplo naipe de personagens. 

A história se enraíza em duas protagonistas. Anjum, que nasceu menino e se tornou uma Hijra (palavra em urdu para designar um transgênero), e acaba criando uma hospedaria num cemitério abandonado. E Tilo, uma arquiteta não-conformista que se envolve sentimentalmente com três colegas de faculdade e é sobretudo uma observadora desencantada: “Não podemos fazer nada a respeito da Caxemira. O que acontece lá não é sofisticado. Tem sangue demais para uma boa literatura.”

Talvez aqui esteja a chave deste esplêndido romance: tem muito sangue, mas não tanto que degenere num mera sofrência panfletária. Graças, quem sabe, às saudáveis e humanizantes contradições da própria Arundhati Roy, que lhe valeram cornetadas de Salman Rushdie (entre muitos outros). Militante feminista, Roy posou já cinquentona para a capa da revista Elle, se justificando com uma coqueteria sarcástica: “É o orgulho grisalho! Chegou a hora de as irmãs malvadas da Cinderela, que eram inteligentes demais para saírem de casa com um desconfortável sapato de cristal”. 

Há cinco anos entrevistei Roy para a Piauí, e a beleza outonal dela ainda deixava no chinelo muita Lolita. Mas, enquanto intelectual, pagou um preço por isso, sendo ridicularizada quando a revista People a elegeu uma das pessoas mais belas do mundo. Lembraram até que de ela tinha dado aula de aeróbica, cruz credo, no início de juventude. 

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Todos estes matizes conflitantes talharam Roy, talvez como ninguém, para abordar o vespeiro temático que é a Índia (tematicamente, a Índia pode parecer um programa de índio). Há uns anos, era clichê a afirmação de que o Brasil constituía uma “Belíndia”, um monstrengo nacional em que se acotovelam o progresso de uma Bélgica e o atraso de uma Índia. Hoje, a própria Índia é uma Belíndia, com um rol de requintados Prêmios Nobel, crescimento econômico robusto e um mosaico alucinante de vicissitudes étnicas e culturais. Como o famigerado sistema de castas, que fatia a sociedade em miríades de guetos, cada um estigmatizando o outro, e todos desprezando os “intocáveis”. 

O novo romance de Roy, apesar dos horrores que revolve, não tem uma migalhinha de vitimização. Anjum, em vez de ficar chorando as pitangas, prefere peitar (com seus seios postiços) a gente machista que a rodeia. Não se reduz a uma carpideira nem a um boneco de ventríloquo das ideias edificantes da autora. Vira e mexe é desgraçada mas engraçada, cheia de defeitos, e usa a sensualidade como abridor de latas. O travestismo dela não se esgota numa modinha descolada – não se trata de uma santinha do pau oco (com trocadilho). Assim como o fervor ativista de Tilo, também nuançado: “Ao longo dos últimos anos, o campo de direitos humanos se tornou uma profissão perfeitamente respeitável e até lucrativa.”

Certo, nem sempre o arco dramático das duas protagonistas é coeso e convincente. Por vezes, ambas parecem fixadas na página como encantadoras borboletas mortas. A própria Anjum, aludindo à multidão que a habita, se descreve como “tudo e nada de uma só vez”. E personagens que são demais acabam por ser de menos. Mas é aí que, na hora H, entra em ação a prosa fulgurante de Roy, um banquete verbal tragicômico (com um laivo almodovariano), uma escrita quase sempre suntuosa, em beleza e densidade. Talvez a engajada Roy subscreva o “decadente” Oscar Wilde (no prefácio de O Retrato de Dorian Gray): “Não existe livro moral nem livro imoral. Os livros são apenas bem ou mal escritos.”

E é essa lucidez ficcional que desvia Roy dos maniqueísmos e da complacência das certezas absolutas. “Aquele cântico caxemiri (“Azadi”, ou liberdade) era mais que uma reivindicação política. Era um brado, um hino, uma oração. A ironia era, e é, que, se você coloca quatro caxemíris numa sala e pede que especifiquem o que exatamente querem dizer com Azadi, eles provavelmente acabarão cortando os pescoços uns dos outros” (pág 205). 

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Daí que este mural cósmico consiga a proeza de atar – ainda que por um triz, aqui e ali quase caindo do cavalo –, o individual e o coletivo, o social e o íntimo, o instante e a História. Eventualmente, apelando para o que há de universal na condição humana: “Os seres humanos não são muito bons quando se trata de reconhecer a dor do outro”. Ou seja: a carapuça serve em todo mundo. Mas sobretudo, e como deve ser numa obra literária, graças ao texto alquímico de Roy. Na entrevista a Elle, a escritora disse: “Não sou religiosa no sentido convencional da palavra. Embora, como Proust, acredito que tudo é possível. O mais próximo que chego da oração é quando escrevo ficção”. Bom, não há dúvida de que as preces dela são ouvidas, ainda que pelo deus das pequenas coisas chamado Literatura. 

*Paulo Nogueira é autor, entre outros, do livro 'O Amor é um Lugar Comum' (Editora Intermeios) 

Capa do livro 'Ministério da Felicidade Absoluta', de Arundhati Roy 

O Ministério da Felicidade Absoluta Autora: Arundhati RoyTradução: José Rubens SiqueiraEditora: Companhia das Letras 488 páginas R$ 65,90

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