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As costas largas de Molenbeek

Prefeito por 20 anos da comuna considerada ‘ninho de terroristas’, o hoje aposentado Moureaux rebate as críticas de que, na sua época, já deveria ter sido menos complacente com os imigrantes muçulmanos

Por Renato Machado e BRUXELAS
Atualização:
  Foto: YVES HERMAN | REUTERS

O septuagenário belga Philippe Moureaux jamais pegou em armas, não manuseou bombas nem segue linhas radicais do Islã. Na verdade, ele prefere deixar claro que não é adepto de nenhuma religião. É agnóstico. Mas, no fim das contas, nada disso impediu que se apontassem dedos para ele nos últimos dias culpando-o pela difusão de células extremistas em seu país e – até mais do que isso – pelos atentados de 13 de novembro na capital francesa.

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Moureaux está aposentado, mas durante muitos anos figurou com destaque no Partido Socialista (PS) da Bélgica. Foi ministro de Estado, senador, e talvez seu maior feito tenha sido se manter por duas décadas como prefeito da comuna de Molenbeek-Saint-Jean (1992-2012), uma das 19 da região da capital Bruxelas.

Nos últimos anos, no entanto, a comuna ganhou fama por sua ligação com o extremismo islâmico. Era lá que viviam os irmãos Brahim e Salah Abdeslam – o primeiro se explodiu em Paris e o outro está foragido –, além do mentor dos ataques, Abdelhamid Abaaoud. Passaram por Molenbeek autores do atentado ao museu judaico de Bruxelas, ao Charlie Hebdo e ao trem Thalys. Centenas de jovens que foram à Síria lutar pelo Estado Islâmico também saíram da comuna, agora chamada de “o ninho do terror”.

Moureaux procurou em seus mandatos aplicar políticas para integrar os imigrantes e transformou a comuna em um ambiente multiétnico. Permitiu a abertura de mais de 20 mesquitas, criou um conselho com seus líderes, centros sociais para imigrantes e permitiu manifestações culturais e religiosas.

Essa abertura agora lhe custa críticas de que teria sido complacente com os muçulmanos, o que permitiu a infiltração do radicalismo religioso. “Se ser complacente significa respeitar as pessoas, então posso dizer que sou complacente”, afirma Moureaux, que há cinco anos casou-se com uma mulher de origem marroquina, fato que provocou golpes baixos contra ele.

Qual foi sua primeira reação ao saber que os ataques em Paris tinham relação com Molenbeek?

Minha primeira reação foi de incompreensão e de tristeza ao ver o massacre em Paris. E, em seguida, quando soube que havia pessoas de Molenbeek envolvidas, isso acrescentou mais uma camada de tristeza. É desesperador saber que pessoas daqui pudessem ter tido comportamento tão criminoso. Mas, evidentemente, após a emoção, vem a reflexão, e nesse momento nos damos conta que colocam as coisas sobre as costas de Molenbeek quando na verdade se trata de fenômeno muito maior, com raízes em muitos outros lugares. Molenbeek é apenas um dentre tantos lugares de onde saem os jihadistas.

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E você esperava que o apontassem como culpado de certa maneira?

Sim, como já aconteceu em toda a minha vida, porque sempre fui um político aberto à população estrangeira, aqui, principalmente, aos de origem muçulmana. Sempre fui repreendido por isso, embora continue acreditando que essa seja a única maneira de evitar a multiplicação dessas ameaças. Há o problema do desemprego, do empobrecimento, da rejeição, que envolve essas comunidades e que precisa ser resolvido. Mas também existe a questão de aceitar essa população, de respeitá-la, se quisermos no futuro evitar viver em uma sociedade em alerta permanente.

Como se construiu esse cenário em Molenbeek, que permitiu a instalação do extremismo religioso? Quando comecei a minha gestão, cheguei em uma comuna que tinha muito menos habitantes que hoje e era dividida em duas. Existia o bairro em que estamos, um bairro residencial tradicional. Para cá tinham vindo as pessoas que no passado estavam na outra parte da comuna. Essa outra parte ficou, então, degradada. Foi abandonada pela, digamos assim, população belga clássica. Com a imigração, principalmente de turcos e marroquinos, nos anos 1960, 1970, esses novos moradores se instalaram na porção degradada. Isso em si já dá uma explicação sociológica da situação. Quando assumi, já havia essa parte da comuna em situação desastrosa. Os serviços de polícia estavam totalmente desorganizados. Então me lancei num programa baseado em três eixos: recriar uma polícia comunitária, revitalizar essa parte da comuna e tentar, por diversos métodos, encontrar uma forma de comunicação com essa população imigrante, especialmente com as pessoas de religião muçulmana. Isso partindo de mim, que não pertenço a religião nenhuma, sou agnóstico.

Muito se fala da proliferação das mesquitas durante sua gestão.

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Quando cheguei, já havia muitas mesquitas. Certas pessoas as descrevem como algo criminoso. Na verdade, é um lugar de oração na maior parte dos casos. Claro que existem algumas que desvirtuaram suas ações. É algo que não desprezamos, mas a grande maioria das mesquitas é local de oração.

Como começou o diálogo com a comunidade muçulmana?

Começou após a visita de algumas pessoas que me disseram que seria importante me encontrar com representantes de certas mesquitas. No começo era um número reduzido, depois fui aumentando, e então criei uma espécie de conselho das mesquitas para poder reuni-los e discutir algumas questões. Um exemplo: durante o Ramadã, havia problemas na comuna envolvendo os muçulmanos que se reuniam em grande número, em certas horas do dia, e impediam a circulação nas ruas. Era uma questão pragmática, aparentemente simples, mas que contribuía para aumentar a discriminação em relação a eles. Então pedi para esses representantes repassarem aos fiéis que não bloqueassem as ruas, que era preciso respeitar as demais pessoas que não pensavam a mesma coisa que eles. Funcionava. E também mantive o hábito de enviar uma vez por ano para as mesquitas, durante o Ramadã, uma mensagem oficial dizendo coisas na linha de que “vocês são cidadãos belgas como os demais, e eu venho aqui dizer que nossa autoridade os tratará da mesma forma que trata os outros, que vocês têm o direito de exprimir a fé de vocês”.

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A origem dessas ações está em uma visão pessoal de mundo ou era um administrador tentando evitar problemas?

É a minha concepção. Sou alguém de esquerda que sempre considerou que era preciso, em primeiro lugar, se interessar pelas classes populares. E dentre essas classes há uma parcela com origem em outro país que tem dificuldades para se inserir na sociedade. Precisei evoluir em minhas concepções porque parti de uma formação marxista, que é antirreligiosa. No entanto, é preciso respeitar essas pessoas, respeitar sua cultura. Não é porque vêm de uma cultura diferente que devo esperar que se aproximem da nossa. Foi uma evolução pessoal.

Quando sua gestão percebeu o começo do radicalismo islâmico?

Percebi esse começo do radicalismo no fim do meu mandato. O primeiro elemento que me deixou inquieto foi após o 11 de Setembro. Constatei que uma pequena faixa da população, sobretudo os mais jovens, viu com alegria esse atentado. Isso foi assustador e nós tentamos difundir que se tratava de atos criminais. Mas era algo muito verbal, não uma política de caráter oficial. Então houve alguns episódios ruins, como os extremistas que atacaram a minha comuna (alguns policiais foram esfaqueados e a delegacia foi atacada após o episódio em que policiais obrigaram uma jovem muçulmana a levantar o niqab em uma abordagem). Começamos a identificar pessoas que tinham certas atitudes excessivamente radicais e, com o conselho do chefe da polícia, criei uma pequena célula para acompanhá-los. Mas isso não é, evidentemente, uma responsabilidade da autoridade local.

Muitos apontam sua gestão como complacente e paternal em relação aos muçulmanos, o que teria permitido a instalação do radicalismo islâmico em Molenbeek.

Minha resposta é que, se ser complacente significa respeitar as pessoas, então posso dizer que sou complacente. Quando assumi a prefeitura, havia lugares em Molenbeek em que a polícia não entrava à noite. Acabei com isso. Reconstituí o serviço de polícia, que estava totalmente deslocado. Em relação ao radicalismo, sempre me posicionei duramente contra. O que me recriminam é pela abertura que dei para a população muçulmana, que qualificam como excesso de complacência, o que não é verdade. Preciso também lembrar às pessoas que já não sou prefeito há um tempo. Não acuso ninguém, mas já faz três anos. Não tenho mais acesso aos serviços de inteligência, não sou mais autoridade dessa comunidade.

O senhor se arrepende de algo?

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Sim. Acho que, em relação aos jovens, não construímos, de uma maneira geral, uma sociedade perfeita. Essa juventude está abandonada, cheia de rancor com a sociedade, com a sociedade ocidental em particular. Eu me arrependo de não ter feito mais esforço para tentar, digo tentar porque não é fácil, tentar ter mais meios para retirá-los desse sentimento de rejeição absoluta.

O senhor falou recentemente que a disseminação do radicalismo na Europa refletia um grande fracasso. De quem?

É um grande fracasso da civilização ocidental em geral, qualquer que seja a política implementada: seja o Comunitarismo na Inglaterra, a política de Assimilação na França, o modelo entre esses dois que eu tentei implementar. Em todos os três casos, os mais duros e os mais abertos aos imigrantes, há uma faixa da população jovem que se radicalizou de uma maneira perigosa e que passou a executar ações de maneira criminosa.

Por conta do momento atual, o senhor acredita que as comunidades muçulmanas na Europa terão daqui para frente menos diálogo com os governos?

Há grande risco de isso acontecer. Tem algumas personalidades... Vi recentemente o ministro francês Emmanuel Macron, da Economia, que tem uma linguagem bem diferente. Ele disse que a sociedade francesa tem responsabilidade pelo abandono de seus jovens, que não foram tratados como os outros no mercado de trabalho. Mas, na verdade, mesmo do lado dele, a grande maioria diz o contrário, que a culpa é dessa comunidade, que é perigosa, etc, etc. Isso, a repressão, talvez dê resultados no curto prazo, mas não no futuro.

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