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Assim caminha CR7

Craque videogame e fenômeno de ‘transmedia marketing’, o português traduz nosso tempo: o do fetichismo imagético

Por José Guilherme Pereira Leite
Atualização:
Pra galera. Na quinta, em Madrid, com a terceira Bola de Ouro. Ele quer mais, 'para empatar c'o Messi' Foto: JAVIER SORIANO/AFP

Na última quarta-feira, desfrutando de sua terceira Bola de Ouro, Cristiano Ronaldo sentou-se à frente de Marcelo Rebelo de Souza, jurista e político português, veterano catedrático da Universidade de Lisboa, figura de proa da centro-direita local, ex-presidente do Partido Social Democrata luso, correligionário do atual primeiro-ministro Passos Coelho. O papo entre ambos, gravado pela Federação Portuguesa de Futebol, girou ao redor de profissão e profissionalismo, sucesso internacional, “ossos do ofício” e a crise portuguesa de autoestima. Cristiano Ronaldo declarou-se um admirador dos ingleses, segundo ele “um povo pontual e justo”. Disse também que a ideia do homem polite, do gentleman britânico, é algo com o que se identifica muito, desde os anos passados em Manchester. Já com os espanhóis, afirmou o supercraque, os portugueses deveriam aprender a se autovalorizar, dar menos importância aos estrangeiros e privilegiar o “produto da casa”. Para ele, sempre na mesma conversa, disciplina, pontualidade, seriedade, empenho e respeito às regras são as chaves do sucesso e da carreira, conforme aprendemos nas montanhas de autoajuda sem segredo que se avolumam há anos em nossas bookshops aeroportuárias. O sucesso, disse ele, “é como um puzzle”: todos os dias há uma peça nova para se chegar ao topo.

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A fala de Cristiano Ronaldo, dias depois de sua terceira consagração global como Fifa World Player of the Year, encerra revelações corroborativas sobre a filosofia da eficácia que parece pautar-lhe a vida. Na cerimônia de premiação, essa mesma filosofia já havia se mostrado, outra vez, quando o Menino d’Ouro repetiu querer “mais títulos coletivos e individuais” para empatar “c’o Messi”. Na plateia, com seu ar impávido-zen quase desmaterializado, Messi sorriu sem grande abalo. Cristiano Ronaldo ao final foi além, soltando um estranho grito que “viralizou” imediatamente nas redes, replicado, imitado e parodiado por uma infinidade de gentes, numa infinidade de versões.

O grito primal de Cristiano Ronaldo sugere a extroversão impulsiva de um reprimido, um tímido cujo acanhamento se desfaz de repente. Não nos enganemos afinal quanto a isso, pois o gajo é um tímido clássico, daqueles cuja face cora, apesar de sua desenvoltura e metrossexualidade já tão fartamente comentada e atacada. O comportamento metrossexual do jogador é, no entanto, a chave para algo de epidérmico em nossa contemporaneidade.

Todos sabemos, faz tempo, que as junções entre o audiovisual e o futebol estão fortemente estabelecidas. Essas junções têm feito girar a roda da fortuna do esporte (em ambos os sentidos) e transformaram o futebol em uma engrenagem pop semelhante às engrenagens do show biz. Esse conluio - sempre mais exacerbado à medida que também se exacerbam as cifras em jogo - vai fazendo dos nossos craques autênticos atores ou personagens de si mesmos. O topete de Cristiano Ronaldo, como os cachos de David Luiz ou as crinas de Neymar Jr., ocupam agora posição essencial no sistema das identificações e transferências milionárias, tanto quanto as habilidades específicas de cada um deles. Tudo se traduz na fórmula brilhante cravada, salvo engano, por José Miguel Wisnik: a “transformação dos estádios em estúdios”.

Essa transformação é o fenômeno decisivo da cultura futebolística contemporânea, um processo definido nos idos de 1994 quando a última fronteira de expansão geoterritorial do jogo foi enfim desvirginada, isto é, quando a Copa do Mundo de Futebol foi realizada nos Estados Unidos, a pátria do show biz e do fetiche imagético por excelência. A quem interessar compreender as obscuras operações que maculam a era Havelange/Blatter, perceba que o centro do poder e de uma corrupção endêmica encontra-se exatamente nessa constituição do futebol como dispositivo de comércio visual planetário, televisivo, real time, ao vivo. O repórter investigativo britânico Andrew Jennings, apesar de seus muitos exageros retóricos, revelou a substância pormenorizada desse enredo narrando a ascensão de Havelange, Blatter e cia. O esquema estrutural do negócio começou pela identificação de um potencial espetacular (subexplorado na gestão do gentleman Stanley Rous no comando da Fifa) e acabou nos sabidos abusos que pulverizaram a empresa ISL (deliberadamente criada para distribuir direitos de transmissão entre amigos). A era Blatter, resultado dessa consolidação, se articula decisivamente no período imediatamente posterior à Copa dos EUA.

Cristiano Ronaldo, na superfície, é o jogador avatar desse período. É o craque videogame, fenômeno claríssimo de transmedia marketing. Em uma recente campanha publicitária, a Nike produziu a animação The Last Game, que condensa algumas dessas questões de fundo. No filme, com cinco minutos de duração, um loiro vilão relativamente jovem, com pinta de empresário alemão, domina o universo do futebol e, apostando na mecanização absoluta dos corpos, coloca no ostracismo os grandes craques do presente (apenas os patrocinados pela Nike participam da brincadeira, é claro). Repleto de bom humor e insights divertidos, o filme apresenta o momento em que, desempregados, cada um desses mitos do esporte contemporâneo se arranja em novos empregos: Wayne Rooney se torna um pescador-estivador, Neymar Jr. é dono de uma barbearia, e assim por diante. O destino de Cristiano Ronaldo, antes da reabilitação redentora agenciada no desenho por Ronaldo Fenômeno, é um emprego de boneco-manequim na vitrine de uma loja de material esportivo.

De fato, na vida real, seu peito estufado de herói aproxima-o da tradição estatuária helenística, atlética, contendo as características básicas do cânone. Donde emana certamente uma parte importante de sua baixa acolhida por boleiros de velha guarda: o mundo do futebol, afinal, pautou-se comumente por uma democracia corporal singular, e até por um certo desleixo, conforme faz ver Hans Ulrich Gumbrecht em seu clássico Elogio da Beleza Atlética (Companhia das Letras). Os corpos de Messi, Romário e Maradona foram claras confirmações dessa democracia. Mesmo o calvo Zidane, alto e longilíneo, é bem verdade, carregou desde o início um quadril alargado. O vulto de um Pirlo, na extremidade oposta a Cristiano Ronaldo, aprofunda ainda mais esse abismo. Mental e levemente corcunda, Pirlo desloca-se pelos campos como um ermitão barbudo, operando na frequência dos mestres peripatéticos.

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Mas, felizmente, o mundo do futebol não se encerra nas agruras de seu funcionamento micromacroeconômico nem mesmo na imperiosa opressão da perfeição estética que nos acomete. Por isso, se na superfície dessas lógicas Cristiano Ronaldo é o avesso do sonho lúdico - o anti-Sócrates, para ficar num exemplo familiar a qualquer brasileiro -, é preciso atentar também para aquilo que diz respeito a seu futebol propriamente dito, para além de sua personalidade controversa ou antipática. Nesse campo, a matéria se complica. Os golos do gajo estão aí, nos youtubes da vida, para que todos os vejam. Muitos deles, os mais relevantes, são pinturas explosivas, repletas de linhas de força e momentos de grande magia. Alguns são combinações improváveis de força e jeito, na infinidade de faltas cobradas ou nas tantas sapatadas certeiras, de fora da área, no chão ou nas forquilhas, exemplos impecáveis do strike-and-goal britânico. Outros são lances de uma instantaneidade pura, arrancadas virtuosas nas quais ele demonstra um domínio de bola chocante e um fino manejo do impedimento. E há aqueles que nos fazem lembrar os áureos tempos do Ronaldo I, o Nazário, antes que suas patelas o obrigassem a pisar no breque. Cristiano Ronaldo, afinal, é aquele que apanha e não cai, distribui elásticos e chaleiras, acelera furiosamente, movimenta-se em quinas e cortes, em xis, trançando caminhos, costuras e bordados sólidos como as tapeçarias artesanais da Ilha da Madeira, sua amada terrinha. Trata-se mesmo de um futebol contundente, eficaz e original. Quanto a isso não há de haver dúvida.

Contudo, numa declaração formidável sobre seu futuro, há cerca de dois anos, ele afirmou que, não sendo lembrado entre os gênios maiores da bola, ficaria satisfeito em ser lembrado como role model. Na frase surpreendente, o jovem português evoca o termo essencial da sociologia de Roberto K. Merton, que em meados do século passado definiu os conceitos de base para a análise moderna dos papéis sociais, da dinâmica dos exemplos públicos e dos mecanismos de espelhamento. A teoria mertoniana do role model não se ancora em paralelos com as passarelas fashion, mas é claro que, no caso em questão, o cruzamento de sentidos é inevitável. Pois Cristiano Ronaldo já deu mostras exaustivas de orgulhar-se de seu físico, bem mais do que a média dos vaidosos.

Nesse sentido, aquilo que mais atenção desperta na curta entrevista para o “professor Marcelo” é outra dessas corroborações que aproximam as posturas de Cristiano Ronaldo dentro e fora das quatro linhas. É o momento em que o jogador define sua carreira como “uma brincadeira que se tornou trabalho”. Perguntado em contraponto se ainda havia gozo no que faz, ele respondeu com a mesma firmeza de seus petardos: “Em tudo tem que haver uma certa diversão, mas uma diversão calculista, uma diversão com o objetivo da eficácia”. Coerência espantosa entre verbo e ato, na era global da produtividade e da performance.

JOSÉ GUILHERME PEREIRA LEITE É SOCIÓLOGO E MESTRE EM ARQUITETURA E URBANISMO PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, ENSAÍSTA E PROFESSOR NA ESCOLA DA CIDADE E NO COMPLEXO EDUCACIONAL FMU

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