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Bach era mais religioso do que seus biógrafos acreditavam

Anotações do compositor em sua Bíblia pessoal mostram que ele era conservador até para sua época

Por Michael Marissen
Atualização:

Não é fácil ser biógrafo de Bach. Talvez nenhum outro compositor tenha feito uma música tão extraordinária e deixado tão pouca documentação sobre sua vida pessoal. Mas, como biografias odeiam o vácuo, especialistas se lançam a todo tipo de especulação (geralmente espelhando sua própria visão de mundo) sobre como Bach se via e via sua obra.

Ilustração deJoey Guidone Foto: The New York Times

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A ideia corrente é de que Bach foi um pensador avançado, quase científico, com pouco ou nenhum interesse em religião. Um livro recente tem o sugestivo nome de Bach Dialogue With Modernity (Diálogo de Bach com a Modernidade). Para chegar a tal conclusão, os estudiosos ignoraram, subestimaram ou entenderam mal uma rica fonte de evidências sobre Bach: sua Bíblia pessoal de estudo, em três volumes, recheada de anotações. Uma avaliação correta desse documento torna absurda a ideia de que Bach fosse progressista ou secularista.

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O exemplar de Bach dessa Bíblia – publicada em 1681-82, com comentários de Abraham Calov sobre sermões de Martinho Lutero, foi descoberto entre os objetos de uma família alemã de imigrantes em Frankenmuth, Michigan, e hoje se encontra na Concordia Seminary Library, em St. Louis. Uma casa editora holandesa, Uitgeverij Van Wijnen, acaba de lançar um ótimo fac-símile dessa obra. 

Os três volumes de Bach trazem a inscrição “JS Bach. 1733” e contêm uma infinidade de observações, correções e comentários escritos à mão. Especialistas na caligrafia de Bach qualificaram a grande maioria das notas como “indiscutivelmente de Bach” ou “provavelmente de Bach”. Centenas de passagens estão sublinhadas ou assinaladas com traços e outras marcas não verbais. Embora essa parte seja mais difícil de avaliar, físicos do Laboratório Nuclear Crocker concluíram, por meio de análise da tinta, que, “com grande probabilidade, Bach também é o autor desses destaques e marcações”.

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E aonde essa análise científica nos leva? Ela mostra que as anotações de Bach testemunham uma prática luterana conservadora. Nos versículos comentados por Calov há muitos pequenos erros de impressão que, sem dúvida, não seriam detectados mesmo pelo mais competente leitor de textos bíblicos. Entretanto, de quando em quando, Bach restaurava textos que estavam longe ser incompreensíveis, ou mudava coisas corretas, adaptando a uma interpretação luterana padrão. Nenhuma dessas correções se origina da lista de erros impressos no apêndice de Calov.

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Alguns estudiosos da Bíblia concluíram disso que Bach atuava como um arguto crítico de texto, debruçando-se sobre os volumes de Calov e comparando-os cuidadosamente, linha a linha, com outras Bíblias luteranas. Entretanto, há um cenário literário mais simples e mais provável, com fortes bases em práticas conservadoras, sociais e religiosas do século 18.

Imagine-se a família Bach numa noite qualquer, reunida na sala para ler a Bíblia em voz alta. As crianças revezam-se na recitação de uma Bíblia da Família, praticando leitura e expressão verbal, além de desenvolver a interpretação espiritual. O patriarca acompanha em sua magnífica Bíblia de estudo, em parte para garantir que elas não pulem nenhum verso, em parte para que ele próprio recorra ao tinteiro sempre que flagrar, comparando com o que está ouvindo, erros nos versículos pinçados por Calov. Nessa cena imaginada, Bach, em várias passagens, possivelmente entende errado o que as crianças dizem e emenda versículos corretos.

Os volumes de Calov também proporcionam uma visão de preocupações profissionais e pessoais de Bach, mostrando que ele se considerava menos um artista moderno que um pregador seguindo sua vocação religiosa. Numa anotação em latim que os físicos do Laboratório Crocker classificaram como “definitivamente de Bach”, ele fala de como pessoas de fé podem encontrar consolo num mundo hostil. Anotações variadas indicam que diferenças filosóficas com seus empregadores sobre o lugar da música na adoração religiosa e na educação perturbavam Bach. 

Apenas umas poucas anotações de Bach sobre o texto de Calov se referem à música, e essas receberam a maior atenção – na verdade, a única – de biógrafos. Escritores de destaque esforçaram-se para explicar essas anotações como progressistas. Na verdade, todas refletem claramente um pensamento luterano conservador.

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Elas também compartilham uma abordagem interpretativa pré-moderna chamada “tipologia”, na qual eventos e princípios do antigo Israel voltam a se manifestar no cristianismo. A tipologia era vista menos como instrumento de estudo que como conforto espiritual. Citando uma das anotações de Bach sobre música como exemplo, John Eliot Gardiner, em sua biografia Bach: Music in the Castle of Heaven, de 2013, escreveu: “Bach compreendeu que a composição mais perfeita decorre, tanto conceitualmente quando na execução, da maior presença de Deus na música. ‘Note bem’, escreveu Bach na margem de sua cópia da Bíblia interpretada por Abraham Calov, ‘onde existe música devocional, a graça de Deus está sempre presente’. Isso me soa como um princípio que muitos de nós, como músicos, automaticamente abraçamos quando fazemos música, seja qual for o Deus em que acreditamos”. Que adorável ideia moderna! Infelizmente, ela não pode ser parte da concepção religiosa de Bach.

Luteranos como Bach condenariam como grave pecado de idolatria toda ideia de que a essência de uma peça musical seja, ou venha a ser, a essência de Deus. E a nota de Bach tampouco sugere a noção menos herética e que Deus possivelmente apenas “resida” na música. Sua linguagem ecoa plenamente as observações luteranas mais ortodoxas sobre Deus e música expressas por Johann Gerhard em School of Piety (1623), um dos muitos livros de teologia prática constantes do inventário de Bach.

Bach era obrigado por contrato a ambientar sua música em poesia litúrgica, o que levou críticos atuais afirmarem que suas escolhas teologicamente conservadoras destinavam-se simplesmente a agradar aos empregadores. Mas, quanto a esse ponto, a Bíblia de estudo de Bach é particularmente elucidativa. 

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Os sentimentos expressos na música vocal de Bach encontram paralelo em suas anotações na Bíblia de Calov. A maior parte da música vocal de Bach foi composta entre os anos 1710 e os anos 1730, e seus comentários sobre Calov foram feitos entre os anos 1730 e os anos 1740. Dado que quase todas as anotações são posteriores à chegada das composições ao público, Bach obviamente endossou os sentimentos expressos em sua música vocal.

Tanto a música de Bach quanto suas anotações sobre o texto de Calov enfatizam: 1) desdém pela razão e exaltação das revelações bíblicas como árbitro apropriado da verdade; 2) menosprezo pela autonomia e conquistas dos homens, exaltando igualmente a dependência de Deus, inclusive no que se refere à posição de alguém na hierarquia social; 3) desdém – explícito ou implícito – pelo judaísmo, catolicismo e islamismo e exaltação da ortodoxia luterana; 4) desprezo pelos estrangeiros e exaltação da fé e da religiosidade germânicas; 5) convicção de que o poder monárquico é concedido não pelo povo, mas por Deus.

Em nenhum ponto de sua música ou de seus comentários sobre Calov, Bach contradiz esses sentimentos. Resumindo, Bach, em seu estrito conservadorismo religioso, vivia e trabalhava em desacordo com as correntes progressistas de sua época, e da nossa. Embora sejamos livres para usar sua história e sua música como acharmos melhor, devemos nos ater à ética e não moldar Bach a nossa própria imagem. / Tradução de Roberto Muniz 

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