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Barrados na barragem

Nosso desejo de não ficar no escuro não justifica que milhares tenham direitos violados

Por Flávia Scabin e Thiago Acca
Atualização:
Impactos. Indígenas da região amazônica estudam mapa de Belo Monte Foto: LUNAE PARRACHO/REUTERS

Que ninguém quer ficar sem energia, isso é um fato. Ocorre que a construção de barragens e toda a infraestrutura para geração de energia não se faz sem um alto custo social. Até que ponto esse nosso desejo de não ficar no escuro justifica que milhares de pessoas, vivendo especialmente na Amazônia, tenham seus direitos violados? 

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Os primeiros impactos negativos da construção das usinas se fazem sentir com a chegada repentina de milhares de trabalhadores para as obras, que sobrecarregam os serviços de saneamento básico, saúde e educação, além de concorrerem para o aumento de violência, acidentes de trânsito e exploração sexual infantil. Para se ter uma ideia, Altamira, que tem aproximadamente 100 mil habitantes, segundo o IBGE, recebeu 25 mil trabalhadores no pico da obra da usina de Belo Monte. 

Os impactos são sentidos também para os que estão distantes das obras. As comunidades, cuja produção econômica e sobrevivência dependem da dinâmica dos rios, como os ribeirinhos, são diretamente afetadas, pois geralmente a procriação dos peixes é prejudicada ou a alteração no regime de cheia dos rios dificulta a agricultura. 

Alguns terão que deixar suas casas. Em 40 anos, mais de 1 milhão de pessoas foram deslocadas em razão da necessidade de geração de energia, segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Ao serem retiradas involuntariamente das terras ocupadas, as famílias podem perder completamente seu referencial cultural, de produção econômica e laços comunitários. Além disso, nada garante que a situação daqueles que são deslocados passe a ser melhor. A partir de análise estatística, o relator do Banco Mundial Michael Cernea diagnosticou, em 2004, o empobrecimento das populações deslocadas. Nada indica que a situação hoje seja diferente. 

Ante um possível colapso no abastecimento de energia, a única solução parece ser investir na construção de outras usinas do porte da de Belo Monte. Nesse sentido, há quem, inclusive, defenda a necessidade de que medidas sejam tomadas para que as obras das usinas sejam mais céleres. Com isso, a necessidade premente de ampliação na oferta de energia pode levar ao entendimento de que e possível, ou até mesmo inevitável, a flexibilização de direitos dessas comunidades locais. Essa escassez poderia justificar uma momentânea limitação na esfera jurídica de determinados grupos em detrimento do bem-estar coletivo?

Na lei não há, em princípio, nenhuma razão que autorize que um grupo, os que não querem o apagão, tenham prevalência sobre aqueles que sofrerão os impactos da construção de mais usinas. Um cálculo de felicidade com viés utilitarista, ou seja, que o resultado final deva ser o bem-estar da maioria, está em desacordo com nosso projeto constitucional. A Constituição tem como um de seus fundamentos a cidadania e como objetivo a construção de uma sociedade justa e solidária. Não há solidariedade quando um grupo está segregado do desenvolvimento. 

Da forma como as obras das usinas vem sendo conduzidas, o que se pode notar é um contrassenso entre a lógica dos direitos e aquela da tomada de decisão que impulsiona a construção de barragens. Tudo começa com um leilão, que decidirá entre os que querem construir as barragens aquele capaz de oferecer a menor tarifa. Menor tarifa pode significar cronogramas apertados e pouco tempo para lidar com a expectativa de que as obras trarão o desenvolvimento local. 

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Antes ou depois do leilão vem o licenciamento ambiental, incapaz de controlar os impactos socioambientais sofridos, seja pela precariedade técnica ou operacional dos órgãos licenciadores ou pela própria lógica do processo, que se baseia na análise dos projetos e não nos efeitos sinérgicos dos projetos para o território. Quando se realizam as audiência públicas, muitas vezes já não há margem para nenhum ajuste no projeto. 

Há um conjunto de exemplos que podem ser dados em que direitos foram violados e nem por isso foi possível gerar o benefício que se esperava. Um desses casos é o da Hidrelétrica de Balbina, que afetou sobremaneira a vida de comunidades locais como os indígenas da etnia vaimiri-atroari, foram imensos, porém a quantidade de energia produzida é irrisória. Mesmo Belo Monte corre o risco de estar pronta e a energia não chegar aos destinatários finais porque há um descompasso entre os cronogramas das obras de geração e transmissão. A usina poderá estar pronta, mas não gerará por um tempo benefícios, por falta de transmissão.

Então, fiquemos no escuro? O problema está em não haver instrumentos e políticas de planejamento capazes de funcionar como estratégia de desenvolvimento regional nesses casos, como também não há planejamento acerca das alternativas energéticas disponíveis e os impactos que cada uma pode trazer. 

Sem isso, os licenciamentos ficam sobrecarregados e os leilões deixam de garantir a eficiência que poderiam legitimamente conduzir as compras públicas. Foi nesse sentido, inclusive, a conclusão a que chegou recentemente o TCU, após um longo processo de auditoria no Ministério de Minas e Energia (MME), na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), na Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e na Eletrobras, ao afirmar que os prejuízos financeiros causados com os atrasos das usinas em construção, estimados em R$ 8,3 bilhões, deram-se em razão da ausência de estudos que justificassem os prazos estipulados nos atos de outorga para a implantação dos empreendimentos, os quais teriam sido definidos “de acordo com a necessidade de energia indicada pelos agentes”. 

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Assim, não podemos inverter as coisas e aceitar que a aceleração de processos, que inevitavelmente acarretarão flexibilização de direitos, seja a solução. Não são os atrasos que geram prejuízos e apagão, mas a falta de planejamento, que subdimensiona a complexidade da instalação desses empreendimentos, gerando atrasos, violação de direitos e apagão.

Não fizemos a lição de casa e não podemos agora, sob o risco de ficarmos no escuro, decidirmos que os direitos de toda essa população que pode ser impactada com a construção apressada de mais usinas hidrelétricas pague por isso.

FLÁVIA SCABIN É PROFESSORA DA FGV E PESQUISADORA DO CENTRO DE PESQUISA JURÍDICA APLICADA DA FGV DIREITO SP

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THIAGO ACCA É MESTRE E DOUTOR PELA USP E COORDENADOR DA LINHA DE ACESSO À TERRA DO CENTRO DE PESQUISA JURÍDICA APLICADA DA FGV DIREITO SP

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