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Luzes da cidade

Califado online

Estado Islâmico usa YouTube e técnicas de marketing em projeto radical de construir nação

Por Lúcia Guimarães
Atualização:
Para onde? Curdo espera na fronteira turco-síria, onde combatentes da etnia lutam com o EI Foto: ARIS MESSINIS/AFP

A cena de dezenas de milhares de refugiados yazidis congelando e famintos numa montanha do Iraque, encurralados pelos militantes do Estado Islâmico (EI), está entre as imagens que marcaram 2014. O avanço do grupo na Síria e no Iraque este ano surpreendeu o mundo pelo grau de crueldade exemplificado por vídeos de degolas de reféns ocidentais. Organizações internacionais de assistência e direitos humanos desistiram de especular sobre o número de vítimas do Estado Islâmico. Há, por exemplo, execuções em massa de soldados iraquianos ou de populações de localidades que não aceitam a ordem de se converter ao salafismo praticado pelos militantes. Há constantes capturas de grupos de mulheres que são vendidas como escravas.

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O grupo é conhecido por siglas que abreviam Estado Islâmico da Síria e do Iraque ou Estado Islâmico do Iraque e do Levante e agora o governo americano pede que usem Daesh, o termo preferido “por nossos aliados na região”, uma sigla do árabe que se refere a “esmagar o inimigo sob o pé”. Trata-se de um esforço para apagar a legitimidade da palavra “Estado” e de um sinal claro do sucesso do grupo, que entende bem de branding em publicidade.

Mais uma vez, o mundo fica paralisado diante do espetáculo de violência que desafia nosso senso de humanidade. Mas, se a reação de horror é legítima, a surpresa não se justifica, argumenta uma veterana observadora da militância radical organizada.

Loretta Napoleoni é uma economista e jornalista italiana com ampla experiência no estudo do financiamento de grupos radicais. Ela pesquisou os esquemas financeiros que permitiram operações de grupos como o Exército Republicano Irlandês e as Brigadas Vermelhas na Itália. É autora, entre outros, de Economia Bandida, sobre a relação do colapso do comunismo com os excessos que desaguaram no crash de 2008, e do recente Maonomics, sobre o sucesso da apropriação do capitalismo pelos comunistas chineses.

Em A Fênix Islamista: O Estado Islâmico e a Reconfiguração do Oriente Médio, Napoleoni argumenta que é um erro enfrentar o grupo responsável por arrastar militares americanos de volta ao Iraque como se fosse a Al-Qaeda ou outra organização terrorista. Não importa a sigla escolhida, o Estado Islâmico quer construir uma nação, o primeiro califado em mais de um século. Enquanto o Taleban se preocupa com educação e escrituras, o Estado Islâmico se utiliza de ferramentas da modernidade como o marketing e o YouTube para alistar uma nova geração de adeptos e quer dissolver fronteiras entre Estados contemporâneos. A Fênix Islamista sai no Brasil em abril. A autora, de passagem por Nova York, deu esta entrevista exclusiva ao Estado. 

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A formação do Estado Islâmico começou antes do avanço sobre a Síria e o Iraque?Podemos voltar aos anos 1990, quando os militantes apareceram na Jordânia sob o nome Tawhid al-Jihad, um movimento radical salafista formado em reação ao reconhecimento de Israel por parte da Jordânia. Mas se organizaram como jihadistas durante a invasão do Iraque em 2003 e se agruparam sob Abu Musab al-Sarqawi, o líder da Al-Qaeda no Iraque morto em 2006. Foi quando começou a luta entre xiitas e sunitas lá. Essa questão é central para o Estado Islâmico: os sunitas se dizem os únicos seguidores legítimos do Islã e os xiitas devem ser removidos da região que os sunitas consideram seu califado. Não uso “exterminados” porque oferecem aos xiitas a escolha da conversão. Por isso dei ao livro o título A Fênix Islamista. Pensávamos que o problema tinha acabado, não?

Este ano, para destacar o radicalismo do Estado Islâmico, ele foi descrito como cruel demais até para a Al-Qaeda. A realidade é mais complicada?Isso é simplificação de jornalista. Há mesmo um racha entre o grupo e a Al-Qaeda. Em 2012-2013, Abu Bakr al-Bagdadi debateu online com Ayman al-Zawahiri, líder da Al-Qaeda, sobre a estrutura teológica do califado. Al-Bagdadi quer ser o califa. Não se trata aqui de graus de violência. A Al-Qaeda era e é extremamente violenta e não se impôs um padrão aceitável de brutalidade.

Qual a importância da personalidade? Ayman al-Zawahiri pode ter sucedido a Osama bin Laden mas não tem seu carisma. E Al-Baghdadi?Ele também não tem mesmo o carisma de Bin Laden, não é um ícone. Mas o movimento não gira em torno de um indivíduo, quer ser um Estado, e assim constrói sua identidade, independentemente do líder. Se Al-Bagdadi morrer, o movimento não desaparece, haverá outro califa. Isso é, para mim, um sinal de modernidade. 

Quando o mundo despertou para a ofensiva do Estado Islâmico em junho, começaram as acusações: Obama e os aliados europeus cochilaram, os líderes árabes foram omissos. O que temos de nos perguntar é: onde estava a comunidade de inteligência todos estes anos? Havia tanto debate online sobre o califado, eles tinham uma presença no norte da Síria, estavam atacando seus rivais jihadistas para tomar seus territórios e ninguém fez nada. Foi falta de trabalho de inteligência? E o que dizer dos think tanks que costumam acompanhar radicais online? Ou foi algo pior, deixamos o Estado Islâmico fazer o trabalho de enfraquecer Bashar Assad para nós? Se for isso, a inteligência é pior ainda. Sabemos que o Estado Islâmico não atacava o Exército de Assad. Precisamos de respostas porque houve um claro fracasso. Já os governos árabes falharam há muito tempo na medida em que não conseguem se tornar democracias. São oligarquias que foram instaladas em parte pelo Ocidente. Acho que o verdadeiro fracasso foi construído ao longo de décadas, não aconteceu recentemente.

Quanto a fadiga de duas guerras na região, somada à recessão global de 2009, limitam a reação ao avanço do Estado Islâmico?Seria muito difícil os Estados Unidos ou um país europeu intervirem na região com tropas. E vejo com estranheza a omissão da mídia. Lembro que eles começaram a sequestrar e matar jornalistas trabalhando na região. Por que não nos foi mostrado o que se passava lá? Não interessava ao público? Acho que sim, a opinião pública não se interessava e a mídia não cobria. 

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O que é o salafismo radical?O salafismo original veio do século 19. O movimento criticava o fracasso da comunidade árabe em criar Nações-Estado como as europeias. Então, eles apontavam para a Europa como um exemplo a ser seguido - nesse aspecto, eram pró-Ocidente. Mas a reação dos europeus ao movimento foi colonizar. Em vez de ajudar os próprios árabes a formar suas Nações-Estado, chegaram como colonizadores. Isso estimulou a radicalização do salafismo, que passou a ver o europeu como o inimigo. Eventualmente o salafismo se fortaleceu bastante na década de 1990 com o reconhecimento do Estado de Israel e prosseguiu com o ódio aos xiitas, que vejo ligado ao nascimento da teocracia iraniana. Embora a revolução iraniana tenha ocorrido na década de 1970, o salafismo da região, em países como Egito e Jordânia, não prestava tanta atenção no Irã até que começou a campanha para projetar a Arábia Saudita como o grande inimigo, o que agravou a luta pela pureza do Islã entre sunitas e xiitas.

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Qual o papel do fim da Guerra Fria e da globalização nesse cenário que descreve?A globalização pesou, mas acho que o fim da Guerra Fria foi mais importante por ter criado esse sistema multipolar sem o confronto de dois superpoderes. Estamos num cenário mais próximo ao século 19. Temos a disputa por recursos naturais, que envolve vários poderes. Não acredito que o Ocidente perceba isso, e ainda tem a mentalidade de que a vitória na Guerra Fria não foi contestada. Mesmo a Rússia parece desejar uma volta ao mundo bipolar. 

Fala-se mais este ano em guerra assimétrica, conflitos que desafiam o enfrentamento tradicional de exércitos.E isso beneficia o Estado Islâmico. Eles entenderam que operam num novo ambiente. Por exemplo, começaram pela Síria, onde sabiam que não haveria intervenção americana. Observaram o fiasco da Líbia e concluíram que não havia disposição para intervir. Será que o presidente Obama compreendeu isso? Acho que não. Sua postura era de confronto com Assad, “não cruze a linha vermelha com armas químicas”. Assad usou e ninguém atacou. A mediação da Rússia foi também uma ótima desculpa para manter distância do conflito na Síria. 

Quando o Estado Islâmico captura uma localidade começa a vacinar a população, toma iniciativas de governo. O Ocidente os define como terroristas. Há uma diferença entre o que fazem e usar um colete suicida?Não há definição verdadeira ou satisfatória de terrorismo. Menosprezá-los como meros terroristas não leva a uma solução. Eles têm seu pequeno exército, sua burocracia, seus vastos fundos. Devemos examinar estratégias para lidar com eles, inclusive a diplomacia. Mas isso não passa pela cabeça de ninguém no momento. Estados Unidos e Grã-Bretanha, com sua política de não negociar com terroristas, de fato negociam o tempo todo, como aconteceu na Irlanda do Norte.

Depois do 11 de Setembro, os Estados Unidos passaram a combater, em maior escala, o financiamento a grupos radicais. O que pode ser feito em relação ao Estado Islâmico?A questão não é apenas a quantidade de dinheiro que acumularam - a Organização para a Libertação da Palestina era muito mais rica. O importante é como gerenciam os recursos, e eles são efetivos, mantêm a população engajada. A OLP era simplesmente corrupta. O Estado Islâmico, até agora, parece muito eficiente. Como quem administra um Estado, eles exploram recursos naturais: petróleo, água, produtos agrícolas. Na vasta área que ocupam, dão oportunidade à população de participar da economia em joint ventures em que recolhem porcentagens da renda obtida. Cobram impostos. Vejo alguma similaridade com o Irã pós-revolução islâmica, na forma como assumiram o controle da máquina burocrática. Eles garantem a ordem e a segurança e a população que os apoia vê a riqueza como seu PIB. A guerra de conquista de território é uma despesa militar.

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O Ocidente luta para compreender que seus jovens queiram se juntar ao Estado Islâmico. Qual sua explicação?A mensagem é muito sedutora. Os jovens veem uma oportunidade de construir uma nação, de implementar uma utopia política. Os muçulmanos tentaram durante muito tempo construir sua nação. A mensagem se torna mais positiva no cenário da grande recessão, que aumentou o senso de marginalização desses jovens no Ocidente. Eles se sentem bem-vindos, incluídos num novo projeto. E devemos levar em consideração um aumento do racismo no Ocidente, uma consequência comum de tempos de adversidade econômica.

O papa Francisco disse, este ano, que a 3ª Guerra Mundial já havia começado, em inúmeros conflitos iniciados por rebeldes e milícias. A sra. concorda?Concordo com ele. Há um desmonte social em curso, em parte, no contexto da globalização. O outro elemento importante é o aumento da desigualdade. O mundo não produz e distribui riqueza suficiente, o que torna o terreno muito mais fértil para conflitos armados.

LORETTA NAPOLEONI É ECONOMISTA E JORNALISTA, AUTORA DE MAONOMICS E ECONOMIA BANDIDA (BERTRAND) 

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