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Campo estéril

Polêmica sobre conceito de latifúndio mostra que desse mato não sai reforma agrária

colunista convidado
Por José de Souza Martins
Atualização:
Kátia Abreu. Ministra falou do que não é objeto de seu ministério Foto: ED FERREIRA/ESTADÃO

O desentendimento inaugural do segundo governo da presidente Dilma Rousseff entre a ministra da Agricultura, Kátia Abreu, e o ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias, sobre o conceito de latifúndio, mostra quanto a questão agrária está sendo proposta muito aquém do que realmente é. A ministra inaugurou-se dizendo que latifúndio já não existe no Brasil. O ministro contrainaugurou-se dizendo que existe e deve ser invadido. Desse mato não sai reforma agrária e é pouco provável que saiam atos de governo que a encaminhem no marco apropriado de uma questão social que pede providências e prontidão permanentes. 

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A ministra fala de um assunto que não é objeto de seu ministério, que deve cuidar da produção agropecuária e não da administração da estrutura fundiária. O ministro fala de um assunto que não é o seu: não faz parte da pauta do MDA gerenciar e propor invasão de terra. Cabe-lhe, antes a administração do conflito, no marco da lei. 

No entanto, a celeuma encerra problemas de governação que vêm sendo empurrados com a barriga desde a posse do presidente Luiz Inácio, em 1º de janeiro de 2003. A reforma agrária não é tema prioritário nem relevante do Partido dos Trabalhadores. Seus governos lhe deram a importância que os antecessores lhe haviam dado, especialmente o governo de Fernando Henrique Cardoso, cujo ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, de todos os ministros da pasta foi o que melhor compreensão teve do que é a questão agrária no Brasil. Foi, no entanto, satanizado pelo MST e pela Pastoral da Terra. 

Naquela ocasião, como o rei Salomão, Lula usou a espada do poder para repartir a questão agrária entre o ministro do Desenvolvimento Agrário e o presidente do Incra, indicado pela Pastoral da Terra, que tinha governança própria, discrepante das opções do governo. Em três meses era demitido pelo presidente da República, único modo de dizer aos interessados quem havia de fato sido eleito presidente e quem é que mandava. Dilma Roussef poderá enfrentar dilema semelhante. Ter o conflito fundiário na própria estrutura do governo e no desentendimento entre ministros já é mais do que um castigo, sobretudo porque é falso o conflito que supostamente expressa. 

É muito sério que o Ministério da Agricultura, historicamente, não tenha especial interesse na chamada agricultura familiar e alternativa e na agricultura agrorreformada, praticadas em maior número de estabelecimentos do que nos das grandes propriedades do agronegócio. A agricultura familiar é a última depositária de um saber ancestral que tem sido o fator de imunização dos pequenos agricultores contra os desastres das oscilações da economia de mercado. O complexo da economia tradicional, de combinação da produção direta dos meios de vida com a produção para o mercado, responsável pelo abastecimento alimentar de extensas regiões do Brasil, tem protegido esses agricultores contra os desastres das oscilações a que está sujeito o agronegócio, contornáveis para os grandes, fatais para os pequenos. 

O Ministério da Agricultura, num país como o Brasil, deveria ser da agricultura e não sobretudo do agronegócio. O feijão e o arroz que muitos ministros e a própria presidente da República comem no dia a dia vêm da pequena agricultura e não da agricultura de commodities para exportação. O que me lembra, aliás, um bendito que ouvi numa região de agricultores pobres do Nordeste, quando lá fazia pesquisa: “Bendito e louvado seja Nosso Senhor da Pobreza. Se o pobre não trabaiá, o rico não tem nobreza”. 

Isso também serve para os que dentro e fora do governo se empenham em fazer da agricultura mote e motivo da luta de classes, que, especificamente quanto a isso, só existe no imaginário de motivação ideológica. Não é estranho que agora, em vez de se discutir a produção agrícola e a distribuição de renda que por ela se faria em favor dos pequenos agricultores de alimentos, estejam se discutindo conceitos. Latifúndio, de fato, não existe numa economia em que a questão agrária não foi proposta pelo conflito entre capital e propriedade da terra. Aqui, com o fim da escravidão, os proprietários de terra se metamorfosearam em empresários do capitalismo agrário, que foi o fundamento da rápida e significativa industrialização brasileira. Mas ao mesmo tempo surgiu no curso do processo a daninha praga do especulador imobiliário, o proprietário de terra que produz menos do que deveria produzir ou ganha sem produzir, comprando a terra barato ou grilando-a, não raro de agricultores pobres, para vendê-la caro quando a oportunidade se apresenta. A questão agrária é no Brasil a questão fundiária, rural e urbana, questão social de uma pobreza iníqua e descabida em que o pobre para trabalhar ou para morar paga tributos fundiários a parasitas sociais, grandes e pequenos, que cobram pela renda da terra como senhores feudais nutrindo-se às custas da pobreza forçada que impõem impunemente aos desvalidos da terra.

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JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA USP. ENTRE OUTROS LIVROS, AUTOR DE DIÁRIO DE UMA TERRA LONTANA (OS ‘FAITS DIVERS’ NA HISTÓRIA DO NÚCLEO COLONIAL DE SÃO CAETANO), FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA DE SCS, 2015

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