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COM AÇÚCAR, COM AFETO

Dos tempos do AI-5, chef resgata doces lembranças de uma Roma amarga para o autor de ‘A Banda’

Por Monica Manir
Atualização:

Mas eis que chegou a roda-viva, e carregou o destino pra lá.

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Lá é Roma, onde Chico Buarque se exilou depois que a ditadura lhe tolheu o verso. Lá é Roma, onde Bettina Orrico se aboletou depois que a pintura lhe tocou a alma.

Era 1969. O cantor, na mira do Exército brasileiro, já tinha explicado por que raios fora à passeata dos Cem Mil, que mobilizara os cariocas em junho do ano anterior. Também tinha esclarecido aos censores as canções do musical Roda Viva, de 1967. Em vão. Recebeu o rótulo de “subversivo em potencial”. Ainda assim o coronel Átila autorizou que viajasse para Cannes. Chico ia participar da Feira Internacional do Mercado de Disco. Mas, em vez de voltar, largou as próprias malas e as de Marieta, grávida, na capital italiana.

Era 1969. Bettina tinha estudado na Escola de Belas Artes, na Bahia, e estampava tecidos. Só que o País ficou pequeno em termos de perspectivas: ela deixava a linha ingênua e entrava no abstrato. Não havia opção melhor que a capital italiana para essa transição. Foi atrás de parentes, mas acabou ficando na casa de uma amiga baiana, casada com um romano. Depois alugou um pequeno apartamento.

Os romanos não queriam ouvir outra coisa que não A Banda, muito conhecida deles por causa da versão em italiano da cantora Mina. Em shows apáticos, Chico repetiu e repetiu que estava à toa na vida. Só um porre de Fernet-Branca para aguentar tamanha aporrinhação.

Os romanos não queriam ver outra coisa que não os alagados, “essas coisas do Brasil”. Bettina expôs suas palafitas no Palácio Pamphilli e, no particular, mergulhou de cabeça nas massas, carnes e temperos. Queria entender como os ingredientes se comportavam, os segredos da cocção, as caldas, os pontos, as doses.

Encontraram-se por meio de uma amiga em comum, Heloísa Marinelli, dona de uma butique que importava com exclusividade as camisas Rachel. Fios de escócia eram a coqueluche. Num dia, Bettina ouviu uma moça sair correndo da loja gritando “ciao”. “Essa é Marieta, mulher do Chico”, disse Heloísa. “Eles estão morando aqui.”

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No verão, para fugir da canícula, a turma frequentava o mesmo clube, ou a mesma palestra. Ficavam conversando à beira da piscina até a hora do almoço, quando os italianos liberavam o pedaço por pelo menos duas horas. As mammas diziam que fazia mal entrar na água depois de comer. Os brasileiros também franziam a testa quando os italianos se perguntavam “quanti tuffi hai fatto?”. Que cazzo importava quantos mergulhos cada um tinha dado?

Uma noite, lá no apartamentinho, Bettina preparou um jantar. No cardápio, patê de fígado com gelatina de vinho do Porto. Ela aqueceu a manteiga, adicionou o fígado limpo e a cebola bem picada. Fritou em fogo baixo até os dois ficarem bem cozidos. Processou tudo, juntou mostarda, tomilho, creme de leite, vinho do Porto, sal e pimenta a gosto. Mais uma bela mexida pra ter um creme uniforme e dá-lhe a gelatina sem sabor dissolvida em banho-maria. A mistura foi para uma forma de bolo inglês forrada com papel-manteiga. Seis horas de geladeira depois, Bettina desenformou, decorou com salsinha e serviu com torradas. “Minha mãe fazia muito isso lá em casa”, disse Chico. O antepasto voltou pra mesa em outros minibanquetes oferecidos por Bettina, que usava um serviço de jantar Pierre Cardin empilhado em cone. O patê sempre teve boa saída.

Uma noite, no apartamentinho dos três – Chico, Marieta e a filha Sílvia, nascida havia pouco –, Marieta chamou todo mundo pro quarto do casal. Chico, de violão em punho, queria mostrar uma música que tinha feito. “Algo a ver com floresta amazônica e bomba atômica”, diz Bettina. Rosa-dos-Ventos? “Pois transbordando de flores / A calma dos lagos zangou-se / A rosa-dos-ventos danou-se / O leito dos rios fartou-se / E inundou de água doce / A amargura do mar / Numa enchente amazônica / Numa explosão atlântica / E a multidão vendo em pânico / E a multidão vendo atônita / Ainda que tarde / O seu despertar.

Talvez.

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Para passar o tempo, Chico fazia uns brinquedinhos com caixa de fósforo ou algo assim. Também vivia inventando campeonatos entre eles, para distrair. Num deles ganhou um quadro pintado por Bettina. Chico abriu o sorriso largo. Bettina ficou orgulhosa, mas guardou isso pro seu ser. Embora todos soubessem que se tratava de Chico Buarque, ninguém o endeusava. “Éramos amigos normais, minha filha, tudo terra-a-terra.”

Bettina fazia parte dos desterrados que estavam com Chico e Marieta no dia em que os dois embarcariam de volta ao País. O clima era tenso, as ligações de telefone do Rio demoravam a voltar contando do cenário. Marieta perguntou se Bettina queria ficar com um divã e um móvel com gavetas. A baiana aceitou de bom grado. Iam substituir o estrado da sala.

Tempos depois, ambos no Brasil, Bettina e Chico se cumprimentaram afetuosamente no camarim de um show dele no Rio. Ela já integrava a Cozinha Experimental de Claudia, revista da Abril na qual ultrapassou o fluffy e abrasileirou a mesa das leitoras. Como afirma seu primo Caloca Fernandes, Bettina faz obra-prima de um ovo frito. Foi no Estúdio Abril, pegado à Cozinha Experimental, que Bettina reviu Chico enquanto ele esperava um ensaio fotográfico. O cantor reagiu com um “peralá, quem vem lá”. E Bettina se entristeceu com a frieza da rima.

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Mais de 30 anos depois, Bettina assiste a Chico – Artista Brasileiro. E, em lágrimas, emocionada com os relatos do filme, diz entender tudo. “Aquela foi uma época maravilhosa pra mim, mas muito difícil pra eles. Passaram necessidade, estavam longe de casa. Não é possível mesmo que Chico se lembrasse de mim, eu era uma sementinha, um grão de areia.”

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No livro Os Jantares que Não Dei, lançado em 2009 pela Be? Editora, ela cria cardápios imaginários para seus ídolos. O dedicado ao músico passa longe das vacas magras de Roma. Tem patê de fígado, claro, mas seguido de trofie com queijo pecorino, bacalhau com broa de milho e bom-bocado em forminhas. “Trofie é uma massa feita à mão, queria mostrar que ele merecia uma coisa especial, artesanal.”

No discurso lido pelo próprio no dia 31 de março de 2000, quando recebia o Prêmio Roma-Brasília, Chico se pronunciou sobre os tempos na Itália. E, em italiano já traduzido, esclareceu: “No fim, Roma me deu poucos amigos, mas amigos feitos como Roma, para sempre. Nesta cidade vivi ainda um ano e meio, e aqueles não podiam ser os tempos mais felizes da minha vida. Mas, com o consenso de Roma, nela vivi um tempo que, em outra parte, talvez teria sido invivível.

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