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Comercial da barbárie

O verdadeiro fundamentalismo do Estado Islâmico é o espetáculo que põe a vida a serviço da imagem

Por Gabriel Zacarias
Atualização:

O Estado Islâmico parece ter declarado guerra contra a História. A organização protagonizou recentemente uma série de ataques a monumentos e sítios arqueológicos no norte do Iraque. Depois de chocar o mundo com imagens de decapitações de prisioneiros e execuções de homossexuais, o EI publicou um vídeo em que seus soldados depredam o importante patrimônio do museu de Mossul. No vídeo, curadamente acompanhado de trilha sonora e com uso frequente da câmera lenta, assistimos a estátuas do Império Assírio e do reino de Hatra serem dilapidadas com marretas e britadeiras. O apresentador do vídeo afirma se tratar de um combate à idolatria. Que conquistadores destruam os ídolos dos povos conquistados, impondo sua própria crença, é um acontecimento comum ao longo da história. O peculiar na ação do EI é que os ídolos atacados pertencem a sociedades milenares e não são mais idolatrados no presente. Cabe perguntar, então: de qual idolatria se trata?

Radicais destroem estátuas do séc. 7º a.C. Foto: REUTERS

 

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Uma das características chave da modernidade foi a emancipação da arte de sua função religiosa, a arte se constituindo como objeto autônomo. O filósofo alemão Walter Benjamin notara então que as obras tinham perdido seu tradicional valor de culto, ganhando um novo valor, que chamara de valor de exposição. Não há como negar que os objetos expostos hoje nos grandes museus ao redor do mundo são alvo de um culto propriamente moderno, um culto da exposição, que se tornou ainda mais forte por causa da disseminação de reproduções das obras. O mesmo Benjamin parece aí ter se enganado, acreditando que as técnicas de reprodução eliminariam o culto do original. O que vemos, ao contrário, é uma peregrinação turística em busca das obras vedetes que manifesta o desejo de encontrar o original das imagens hiperdifundidas. Se o ataque do EI atingiu alguma idolatria não foi o culto dos deuses assírios, há muito esquecidos, mas sim o culto moderno da exposição. Um golpe, portanto, que não visava a combater a religiosidade das populações locais, mas sim a chocar o Ocidente ao ferir sua estima pela conservação do patrimônio histórico e artístico.

Vale lembrar que esse gesto não é novo na história do Ocidente e tampouco é preciso remontar às invasões bárbaras para encontrá-lo. Chocar o burguês e profanar o cânone artístico foram gestos típicos das vanguardas artísticas que deram o tom da arte ocidental entre os anos 1910 e 1960. Essas se contrapunham justamente à nova sacralização da arte, tornada objeto de um culto estético que encontrava nos museus seu novo templo. As vanguardas, em suas diferentes variantes, almejavam ultrapassar as barreiras que separavam a arte e a vida, reintegrando o fazer artístico na prática quotidiana. Marcel Duchamp foi provavelmente o artista que melhor personificou essa vontade profanadora da arte de vanguarda, pintando bigodes na Mona Lisa (na famosa obra L.H.O.O.Q.) ou propondo que se usasse “um Rembrandt como tábua de passar”. Mas Duchamp nunca abandonou o terreno do simbólico, nunca destruiu de fato uma obra. Essa agressividade simbólica se tornou uma espécie de regra geral para a arte de vanguarda. A destruição da arte foi tantas vezes encenada que acabou revertida em seu contrário. O gesto destrutivo foi convertido em gesto criativo - a tela sendo rasgada por Lucio Fontana ou alvejada pelo fuzil de Niki de Saint-Phalle - e a agressividade foi sublimada na produção artística. 

O ataque ao museu de Mossul retoma, em certo sentido, esse mesmo desejo de destruição da arte que se encontrava nas vanguardas e parece mesmo realizá-lo de maneira direta, sem a sublimação que vemos na arte. Mas essa impressão é, ao menos em parte, falsa. Afinal, o objetivo principal não é a destruição em si, mas o registro e a exibição da destruição. A vacuidade da justificativa religiosa fica patente quando o alvo são ídolos que ninguém mais venera. A destruição física das estátuas é um simples meio para o que realmente importa: obter uma peça de propaganda bem-sucedida. Se para a arte contemporânea o gesto destrutivo se tornou um meio para a criação de obras de arte, para o EI a destruição parece ser um meio para produzir peças publicitárias. A grande diferença entre a destruição encenada das vanguardas e a encenação destrutiva do EI está no fato de que na segunda as fronteiras entre o real e a representação se embaralham. O simbólico não é mais reconhecido como uma esfera própria e não se hesita em sacrificar o objeto à produção da imagem. 

A mesma lógica vale, aliás, para as execuções espetaculares promovidas pelo EI, nas quais importa menos a eliminação física dos adversários que a produção de imagens chocantes que garantam o sucesso midiático da organização. Nesse sentido, o que a produção propagandística do EI revela, por seu caráter extremo, é apenas o lado mais perverso da sociedade do espetáculo. A inversão completa entre o concreto e o abstrato demanda o sacrifício do real no altar da representação. Esse é o verdadeiro fundamentalismo do EI, um fundamentalismo espetacular no qual a vida é reduzida a mero meio a serviço da imagem. 

GABRIEL ZACARIAS É DOUTOR EM ESTUDOS CULTURAIS PELAS UNIVERSIDADES DE PERPIGNAN (FRANÇA) E BÉRGAMO (ITÁLIA). MORA EM PARIS

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