Como o connoisseur de arte trabalha ao lado da tecnologia

No futuro, ciência e especialistas trabalharão melhor juntos

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Por Redação
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O paciente está cuidadosamente posicionado numa imaculada mesa retangular. É dado um sinal e, por trás de uma parede de vidro, um técnico aponta uma máquina de raio-X para ele. Começa o trabalho. Não se trata de um hospital, mas do laboratório de conservação do Rijksmuseum, de Amsterdã. Para o recente simpósio de dois dias intitulado Jewellery Matters, o museu inovou ao convidar artistas, criadores, educadores e colecionadores, além dos usuais historiadores de arte. 

'Salvator Mundi', obra de Leonardo da Vinci que superou 1 bilhão de reais no leilão daChristie's em 2017 Foto: Peter Nicholls/Reuters

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O paciente era um falso pingente do século 17 cujo esmalte estava sendo analisado para se descobrir a verdadeira data de criação. No século 19, a demanda por tais joias superou a produção e surgiram pingentes falsos (alguns magníficos) para suprir o mercado. Seria este um deles?

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O mesmo equipamento de espectroscópio fluorescente de raio-X (XRF) do laboratório pode ser usado para se estudar uma estátua indiana de bronze do século 16, um vaso romano de cristal ou uma página de manuscrito medieval com iluminuras. Um técnico descreveu seu funcionamento. Um raio apontado com precisão penetra no objeto, ativando os elétrons pelos quais passa. Segue-se uma espécie de dança durante a qual os elétronssaltam, para em seguida voltar à posição inicial. A energia liberada é medida e os componentes materiais e suas proporções são identificados. Comparações com o banco de dados do museu levam à data de fabricação da joia. Como nem todos os museus usam o mesmo software, uma padronização permitirá reunir dados de diversas instituições. Esforços nesse sentido já estão em andamento.

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O XRF é apenas uma de muitas técnicas de alta tecnologia que estão sendo usadas nesse campo. A espectometria de massa de plasma acoplada indutivamente por ablação a laser (LA-ICPMS), por exemplo, pode precisar a data da decoração de peças de cerâmica da dinastia Qing. Nela, um poderoso laser vaporiza uma minúscula quantidade de material, que é então fracionado em íons. Os diferentes elementos são então ordenados por sua massa e contados por um rapidíssimo espectômetro de massa – quanto mais alto número atingido, maior a presença do elemento. A datação por carbono14, a mais conhecida dessas ferramentas, utiliza a previsível deterioração dos isótopos radioativos do carbono-14 para dizer a idade de painéis de madeira de pintores clássicos. Ela e a reflectografia de infravermelho estão entre as muitas ferramentas tecnológicas usadas no intenso escrutínio do quadro Salvator Mundi e tiveram papel decisivo na reatribuição de sua autoria a Leonardo da Vinci – e no subsequente recorde de preço de US$ 450 milhões alcançado em leilão.

Esse valor e a tempestade midiática que se seguiu mostram como a ciência se tornou importante na história e no mercado de arte. Durante séculos, connoisseurs passaram a vida manuseando objetos, estudando arquivos e inventários, buscando origens e treinando os olhos para ver o que as obras de arte eram de fato e não o que os donos gostariam que fossem. Eles procuravam responder a perguntas como “quem fez isto?” e “quando foi feito?”. Agora, a ciência pode dar respostas com mais rapidez e certeza. Quem ainda vai querer o trabalho de peritos, com seus formais “tudo indica que...”? Estaria mais uma categoria de especialistas em vias de se tornar redundante por causa da tecnologia?

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É uma conclusão razoável – mas prematura. O connoisseur, ou seja, o curador, o estudioso, o negociante ou o colecionador com visão investigativa, bem informada e imaginativa, tem, para começar, a capacidade e a autoridade para formular perguntas sobre uma obra de arte. E, de qualquer modo, mesmo as mais atraentes tecnologias têm limitações. A imutabilidade do ouro até agora o manteve fora de novas investigações. A datação pelo carbono-14 só pode ser usada com materiais orgânicos. E, de acordo com Andrew Shortland, diretor do Cranfield Forensic Institute (CFI), um laboratório que estuda tudo, de balística a cadáveres, “a menos que se use a datação por radiocarbono (carbono-14), não se consegue datar um objeto”. Outros procedimentos, como os mencionados acima, resultam em algum grau de erro. Dependendo de variáveis, como a escolha do software ou o tamanho do banco de dados, o erro pode ir de alguns anos a um século ou mais. 

Soluções mais rápidas e claras podem ser encontradas se um elemento presente numa peça tiver sido usado apenas em determinada época. “O cromo, um componente muito estável, foi descoberto em 1797”, assinala Shortland. Quando o cientista encontrou cromo numa folha verde de uma escultura de porcelana Meissen que analisou, ele disse ao colecionador que a peça não era a valiosa escultura do início do século 18 que este imaginava. O cliente, porém, era um connoisseur cujo conhecimento o cientista respeitava. Ele tinha certeza de que sua peça era da época e pediu novos testes. As outras folhas não mostraram traços de cromo. A primeira folha periciada vinha de uma restauração posterior. O colecionador estava certo.

Outro fator limitador é que a disponibilidade de tecnologia é limitada. O número de especialistas do ramo é pequeno e o custo do equipamento e da equipe necessários para uma análise tecnológica é alto. Alguns grandes museus conseguem manter laboratórios próprios para analisar suas coleções. Já colecionadores privados, negociantes de arte e casas de leilão têm de usar os poucos laboratórios que fazem comercialmente o trabalho, como o CFI. As tarifas dependem do tempo envolvido. Isso significa que, exceto quando o sentimento supera a prudência, os clientes mais provavelmente vão levar ao CFI uma peça avaliada em US$ 400 mil e não uma que valha US$ 4, mesmo que o exame em questão leve apenas um dia. O uso de inteligência artificial sem dúvida vai abrir novas possibilidades parao setor. Na verdade, Robert Erdman, principal cientista do Rijksmuseum, já começou a trabalhar no “Connoisseur do Século 21”, um projeto de aprendizado de máquina que procura reunir tecnologias existentes em uma “superferramenta”.

O fato de o Rijksmuseum ter aberto seus laboratórios para o simpósio Jewellery Matters reflete as convicções de uma de suas principais vozes, Robert van Langh, chefe do setor de conservação. Perito em ourivesaria com PhD em ciência de mateariais e história da arte, Van Langh acredita, porém, que “na busca do conhecimento sobre obras de arte, tanto a linguagem da ciência convencional quanto a das humanas devem ser empregadas” ­­– ou, no mínimo, os conhecimentos dos dois campos.Em outras palavras, embora a natureza e a interação das contribuições de cada lado possam variar, o futuro pertence a uma parceria entre a tecnologia e o connoisseur. / Tradução de Roberto Muniz 

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