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Considerado profético, livro que 'previu' Trump em 1935 é anacrônico

Comparações entre 'Não Vai Acontecer Aqui', de Sinclair Lewis, e eleições americanas são forçadas

Por Paulo Nogueira
Atualização:
O presidente dos EUA, Donald Trump, durante a campanha eleitoral em 2016 Foto: Chris Leane/Reuters

Sinclair Lewis foi o primeiro norte-americano a ganhar o Nobel de Literatura, em 1930. Já naquela época houve quem considerasse a atribuição do prêmio uma gafe embaraçosa da Academia Sueca (não seria a última). O próprio Lewis concordou, demonstrando (agora sim pela primeira e talvez última vez), para estupefação geral, que as palavras “escritor” e “modéstia” não são oximoros. 

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A obra dele gerou polêmica. Por causa de Elmer Granty, romance que critica o fanatismo religioso de um picareta evangélico, Lewis foi convidado para o seu próprio linchamento (compreensivelmente, declinou). Mas o autor pecava por um naturalismo unidimensional, que parecia mais um sociologismo esquemático, aquilo que James Wood chamou de “o fetiche do fato”, e que outro crítico explicou assim: “Este livro me ensinou mais sobre pinguins do que eu gostaria de saber.” Como desgraça pouca é bobagem, o estilo da prosa de Lewis é monocórdico que nem uma torneira pingando. 

Se toda regra tem exceção, a dele é Babbitt. Publicado no mesmo ano do Ulysses de Joyce, o romance foi dedicado a Edith Warton, uma escritora muito mais duradoura. O herói epônimo é um empresário de meia-idade, tolhido pelo conformismo. Nos EUA, o termo “Babbitt” virou sinônimo de provinciano e conservador. O protagonista suspira: “Praticamente nunca fiz uma única coisa que desejei em toda a minha vida.” Otto Maria Carpeaux comparou o personagem a Dom Quixote (menos, Carpeaux, bem menos). 

Os temas de Lewis eram claros: o kitsch americano (cuja Capela Sistina podia ser o topete de Donald Trump), o moralismo tacanho e o materialismo farisaico (universais: nem todo Babbitt é americano, e nem todo americano é Babbitt), a ambição rapace e o consumismo desesperado. Lewis tenta regar seus pitos com humor, mas a sátira dele volta e meia descamba na caricatura, sem a vivacidade complexa do compatriota Mark Twain. Como notou Voltaire, o grande humorista é no fundo um pessimista, que ri para não se enforcar. Já Lewis sempre preferiu o copo meio cheio. 

Ao morrer em 1951, já era encarado como naftalina. Depois do Nobel de 1930, a obra dele definhou ainda mais. Não Vai Acontecer Aqui é de 1935. Mas pode um autor anacrônico e datado ser presciente? Recentemente, alguns articulistas apontaram uma perturbadora semelhança entre o protagonista de Não Vai Acontecer Aqui e Donald Trump. 

Há um subgênero literário conhecido como “What if” (“E se...”), que explora uma alternativa histórica. É o caso de Pátria Amada, romance de Robert Harris, que responde à hipótese: e se Hitler tivesse vencido a guerra? Ou Complô Contra a América, de Philip Roth, no qual Charles Lindbergh derrota Roosevelt nas eleições presidenciais. Ou Submissão, de Houellebecq, em que um muçulmano é eleito presidente da França. Mas Não Vai Acontecer Aqui seria mais intrigante: o passado previu o presente, quase mediunicamente. 

Há meses, num teatro na Califórnia, uma peça baseada no livro foi um sucesso de bilheteria. Numa cena, o protagonista interpelava a plateia, espumando contra “a mídia golpista”, como Trump fez e faz, antes, durante e depois da campanha. O público caía na gargalhada, numa catarse inquieta. O próprio romance, esgotado e esquecido, foi exumado e pavoneado nas vitrines das livrarias.

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O suposto modelo de Trump é o personagem Buzz Windrip, um populista que cria uma “Liga dos Esquecidos”, e, para estupor geral, ganha a eleição para a Casa Branca. Mas o verdadeiro protagonista da história é o jornalista Doreman Jessup – ele alerta em vão que, sim, o fascismo “pode acontecer aqui na América”. E (spoiler alert!) dito e feito.

Até que ponto o renascimento da obra não passa de curiosidade mórbida? Por um lado, a analogia força a barra. Trump, que surta no Twitter e esgrime a pós-verdade, confundindo opinião e informação, destoa de um demagogo de 1930 (baseado no senador Huey Long, que só não concorreu à Casa Branca porque morreu antes). Mais: Windrip é democrata, e não republicano, e estatizante (com renda mínima e tudo), ao contrário de Trump. Por fim, e pelo menos até agora, os “checks and balances” (freios e contrapesos) institucionais da democracia americana obrigam Trump a baixar a bola. 

O contexto no qual o romance foi escrito eram outros quinhentos: na década de 1930 estavam no poder Hitler e Mussolini, e seus lúgubres pastiches, Franco e Salazar. Do outro lado da barricada, Stalin estendia a teia do Gulag por toda a URSS, e passava o rodo na velha guarda bolchevique. Hoje, a ameaça imediata vem do terrorismo e de outro topetudo: o Kim da vez na Coreia do Norte.

Por outro lado, o personagem Lee Sarason é a cara do até ontem marqueteiro/ideólogo de Trump, Steve Bannon. A Liga dos Esquecidos de Windrip recorda os muitos milhões de eleitores americanos frustrados e amargurados com a modernidade (inclusive dos costumes) e a globalização, levianamente esnobados pela elite progressista de Manhattan, para quem a vitória de Hillary Clinton era barbada. Só que não, né? 

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Mas a principal simetria entre vida e arte é a boçalidade troglodita e bombástica, porém oca, das duas criaturas, Trump e o personagem de Lewis: “Doremus nunca escutara Windrip durante um de seus orgasmos oratórios, mas repórteres políticos haviam lhe contado que sob o feitiço do momento a pessoa tomava Windrip por Platão, mas que a caminho de casa já não era possível se lembrar de nada do que ele dissera.”

E daí? Bem, ainda que Sinclair esteja “do lado certo” (se acreditarmos em absolutos civilizacionais, como a liberdade), já Flaubert avisava: não se faz boa literatura com bons sentimentos. Literatura não é santimônia, e seu inferno está cheio de boas intenções. Não é generalização nem homilia, mas uma estranha alquimia entre o particular e o universal, que realça uma minoria de um (o protagonista), contraditória até à raiz dos cabelos, banhada de luz e sombra. 

Já o virtuoso Não Vai Acontecer Aqui cola com cuspe uma série de resumos biográficos (perfis jornalísticos) de inúmeros personagens, estanques e estáticos, com raríssimas e ralas cenas em tempo real – a alma dramática da narrativa de ficção. Só em escassas ocasiões o leitor concentra sua atenção sobre o gorro e os guizos, e não vê o profeta solene disfarçado de bobo da corte. Que Sinclair Lewis descanse em paz (isto não é necessariamente um elogio). 

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*Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios) 

Capa do livro 'Não Vai Acontecer Aqui', de Sinclair Lewis 

Não Vai Acontecer Aqui Autor: Sinclair LewisTradução: Cássio de Arantes LeiteEditora: Alfaguara 408 páginas R$ 54,90

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