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Contos de Edgar Allan Poe são reeditados no Brasil

'Histórias Extraordinárias' provam que o autor permanece aterrorizante mesmo na era do cinema high-tech

Por Caio Sarack
Atualização:

Ouvimos o corvo de Edgar Allan Poe grasnar “Nunca mais!” e tão logo somos transportados para o quarto escuro em que a personagem contempla a ave agourenta sobre o busto de Minerva, o mesmo acontece com o ruído da extensa escada de madeira que estala quando outra personagem sobe seus degraus. Nos tempos dos filmes 3D e das superproduções audiovisuais, o extraordinário e o suspense acabam por se tornar uma espécie de coringa para franquias de terror ou de fantasia. A capacidade que nosso tempo tem de replicar os modos de fazer e produzir dos muitos formatos artísticos nos atordoa de tal maneira que, não raro, passam despercebidos os grandes artistas dos tempos idos. A reedição especial das Histórias Extraordinárias, pela Companhia das Letras, nos recoloca no cerne de uma discussão sobre público e obra, autor e leitor.

+Beckett é comparado a Allan Poe, Dostoievski e Saramago em livro

Jane Fonda como Metzengerstein no episódio de Vadim da versão de contos de Allan Poe para o cinema 

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Entre o sucesso de público e o interesse acadêmico existe um estreito, mas profundo espaço da experiência artística: se as quase 900 páginas de experimentação formal do Ulisses de Joyce ainda não ocupam esse espaço, o nome de Edgar Allan Poe consegue produzir, mesmo que brevemente, uma unanimidade. Acessível e com histórias surpreendentes – descrições quase sempre insuficientes e redutoras, o autor americano consegue cativar tanto o interesse massificado de quem procura passatempos que rompam com o marasmo da vida cotidiana quanto deixa os rastros da composição muito rigorosa de um autor que compreende, de fato e de direito, os vínculos profundos entre forma e conteúdo, expressão e percepção. 

+++Antônio Xerxenesky mergulha no terror em 'As Perguntas'

Em seu Filosofia da Composição, Poe não só descreve o novo paradigma da produção literária do seu século 19 e dos que viriam depois, mas também busca entender o leitor que está se construindo histórica e socialmente neste período: a consolidação da reprodução em série de livros e a consequente acessibilidade de cada vez mais homens e mulheres foram produto da expansão do trabalho na cidade e da gestão social do calendário do novo leitor; as horas reduzidas que tinham seja para reflexão intelectual seja para fruição artística, agora ocupam o centro das atenções do autor. Como podem criar suspense, melancolia ou qualquer tipo de sensação, se o leitor abandona o livro e interrompe a circunstância da leitura e seu ambiente? É, por isso, necessário que as estrofes sejam reduzidas, que os versos levem em conta o vocabulário do leitor, que o autor reconheça nas palavras o seu peso social e sua expressividade quando lidas; ao fim e ao cabo, a sensação que o autor quer provocar é o elo inevitável que a literatura guarda entre quem escreve e quem lê, eis a interação constitutiva forma-conteúdo, expressão-percepção. Mas se como já dissemos, a vida social das palavras e das imagens interfere no fazer do artista, como é que Poe permanece interessante para o leitor que não busca nele seus expedientes de produção literária, mas o arrepio gelado que nos provocam o estresse de Roderick Usher e a aparição de lady Madeline em A Queda da Casa de Usher ou mesmo a materialização da Sombra na parábola contada por um autor póstumo? Como é que o conteúdo extraordinário, isto é, incomum dos contos de Poe ainda podem nos mover em meio aos filmes com seus efeitos especiais e salas high-tech? 

Quem sabe, ao tatear a capa roxa e as letras douradas que esta reedição apresenta nos sintamos como diante de um livro de fábulas ou histórias folclóricas de muito tempo atrás; que esses grafismos na capa evoquem um caráter incomum e instaurem uma ambiência diferente daquela com que estamos habituados, e que os estímulos vários e muito intensos dos nossos formatos do século 21 não consigam reproduzir. A distância que enxergamos nas historietas de cigarra e formigas, raposas e uvas, ou nas poesias de séculos mais antigos parece se tornar o exíguo terreno entre a minha mão que folheia o livro e a história que acompanho com os olhos bem abertos. As experiências da literatura e da leitura que atualiza em seu tempo com sua composição de inversões e expectativas, Edgar Allan Poe mostram que o horror coabita a pasmaceira da rotina e o extraordinário espreita no mais comum dos dias. Para expressar o horror da morte ou a loucura dos solitários é preciso anunciar a vida comum a fim de que, como escreve Jorge Luis Borges sobre o nosso autor, o mundo que sonhou em seus contos perdure e o mundo real tenha a figura dispersa de um sonho comum. 

*Caio Sarack é mestre em filosofia pela FFLCH-USP e professor do Colégio Nossa Sra. do Morumbi e do Instituto Sidarta 

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