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Cozinha camarada

Sociólogo oferece um ingrediente raro para explicar a onda gastronômica que assa em fogo baixo as nossas ideias: o poder de apontar um horizonte de reencantamento pelo mundo contra a burocratização da vida moderna

Por Vitor Hugo Brandalise
Atualização:

Há qualquer coisa de rural em Carlos Alberto Dória, sociólogo de 65 anos, estudioso da culinária brasileira, que acaba de abrir a porta de seu apartamento na Consolação, centro de São Paulo. Ele segura o cachorro Batman para que não avance, estende a mão, convida a entrar. Seria a camisa listrada, o colarinho aberto, a barba bagunçada? Ele mostra a cozinha, piso de azulejos azuis, duas colheres de pau na bancada. Oferece um café coado. Sentamos à mesa de pinho de riga na sala muito ampla e ele escuta a primeira pergunta. “Espera. Qual é o seu prato favorito?” E prossegue, bem sério: “Pense nesse prato, isso vai ajudar na conversa. Em gastronomia, a palavra é encantamento.”

A palavra, então, passou a ser simplicidade. O que há de rural em Dória, na verdade, é o que há de simples. Ele é coerente à sua produção intelectual: em seu blog (o e-BocaLivre) e no seu último livro, Formação da Culinária Brasileira (Três Estrelas), de 2014, o sociólogo defende uma revisão da “espetacularização da comida, que esconde o interesse legítimo pelo que levamos à boca”. É uma simplicidade difícil, que pode até andar meio perdida - algo que ele vê com otimismo, porque cria a oportunidade do reencontro. “O importante é manter o espírito de busca”, diz.

  Foto: CARLINHOS MULLER

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O duro é que, em oposição a isso, há as ideias que confundem e iludem. Em mais um capítulo da tendência de encarar a comida como espetáculo, estreia na terça-feira o Masterchef Junior, programa de competição culinária (agora, entre crianças de 8 a 13 anos). “Em um sentido, esses programas envolvem as pessoas com processos que elas ignoravam. Mas eles não têm preocupação em explicar os signos da culinária. São alienantes, sem interesse cultural e valorizam o pior do capitalismo: a competição, o subir a partir do fracasso dos outros”, afirma o sociólogo, pós-doutor pela Unicamp.

Coincidentemente, também na terça abre em São Paulo a exposição O Tempo e Eu (e Vc), sobre Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), um dos maiores pesquisadores da cultura popular brasileira, autor de A História da Alimentação no Brasil, de mais de 1.000 páginas, referência na área. Dória é um dos curadores da mostra. “Aos que quiserem aprender o que a espetacularização da cozinha não tem interesse em explicar, eu recomendo”, diz Dória nesta entrevista ao Aliás.

Qual deve ser o papel da gastronomia na vida das pessoas? Primeiro, é preciso diferenciar a culinária da gastronomia. A culinária é um conjunto de modos de fazer, de produzir alimentos de uma sociedade. Já a gastronomia surge na Europa, ligada ao aparecimento dos restaurantes, quando se começa a estruturar um discurso para o público sobre a comida. Gastronomia, então, é um discurso sobre a comida. É um discurso que pode ser crítico, analítico, ou pode ser só de elogios. A partir dos anos 90, esse discurso fica importante na sociedade, porque começa a haver uma preocupação grande com a qualidade do que se come. A crise da vaca louca é um marco. Os consumidores passam a querer discutir a qualidade da comida. A partir daí aparece também uma feição educacional: as pessoas se interessam em aprender mais, surgem os cursos sobre vinhos, sobre culinária... Já do ponto de vista ético e estético, vejo a gastronomia como um trabalho de reencantamento do mundo, oposto à rotinização e à burocratização da vida nas sociedades modernas. As artes em geral dão oportunidade de quebrar isso, de provocar um estranhamento na pessoa, tirá-la da mesmice. A gastronomia assumiu esse papel na sociedade de massas, de apontar para um horizonte de encantamento.

Quais os traços fundamentais da formação da culinária brasileira, tema de seu último livro? Como toda cozinha nacional, a cozinha brasileira é cindida entre a cozinha de elite e a cozinha popular. A cozinha da elite, historicamente, tende a ser centralizada e, no Brasil, desde o século 19, a referência foi a França. Mais recentemente, a influência é de um discurso mais moderno, como o da culinária espanhola. Uma cidade como São Paulo tem várias referências para as classes média alta e alta, restaurantes de cozinha japonesa, italiana... Ao passo que a culinária popular não é centralizada. Ela expressa processos históricos localizados, apropriação dos ecossistemas nesses espaços. O chamado sertão de leste, que é o Vale do Paraíba, Vale do Rio Doce, o sul de Minas, tem a culinária caipira, com influência tupi-guarani. Já a culinária do sertão da Bahia é outra coisa, ligada ao ciclo do gado. Há essa riqueza e essa diferenciação. E há também uma falácia: a abordagem da culinária brasileira propõe que existe um conjunto de cozinhas regionais espalhadas pelas cinco regiões sociopolíticas que o IBGE dividiu o Brasil. Mas não é assim.

Por que isso é uma falácia? Faz mais sentido falar em uma geografia dos ingredientes. Por exemplo, a culinária baseada no pequi está presente em Goiás, no sul da Bahia, no norte de Minas, também na Amazônia, no Pará. Não se encaixa em uma região única do IBGE. E não só o discurso regional, mas o discurso de culinária nacional também é anacrônico. Há, historicamente, uma internacionalização de ingredientes. É preciso ver o País desde a origem em um circuito de trocas comandado por Portugal. Vieram produtos de todos os continentes, e isso não permite falar em ingredientes nacionais. As barreiras da língua, do comércio, foram caindo. Em termos econômicos, o nacionalismo não existe mais. Esse discurso de cozinha nacional e regional, portanto, serve à indústria do turismo, mas não à história da cultura culinária.

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Por que considera um mito que a culinária brasileira seja um amálgama da contribuição miscigenada de índios, negros e brancos? Há a contribuição europeia ou portuguesa, especialmente nos usos do açúcar, que estrutura toda a doçaria. Os negros, por outro lado, não tinham liberdade pra cozinhar, eram escravos. E na culinária é preciso liberdade para criar. Por trás de um sabor, há muita tentativa e erro, um acúmulo de boas soluções. Assim, a participação dos negros nesse processo de elaboração é pequena. Em relação aos índios, pouco sabemos, porque pouco retivemos da diversidade dos povos indígenas. Havia mais de 1.000 etnias quando o Brasil foi descoberto, e hoje há pouco mais de 200. Cada povo tinha sua maneira de comer, seus ingredientes. Então essa fórmula da miscigenação, de que cada um pôs a sua colher num caldeirão geral, precisa ser discutida. A fórmula da cozinha brasileira seria: índios + negros + portugueses = Brasil. Isso também é uma visão turística da culinária, não é de um processo social e histórico que levou séculos para se consolidar.

O senhor fala em gastronomia como discurso. Como é o discurso gastronômico de hoje? É o da valorização do ingrediente. O discurso anterior, que valorizava a técnica, acaba em 2011, quando o (chef Ferran) Adriá fechou o El Bulli (cinco vezes eleito o melhor restaurante do mundo e que tinha como base a “cozinha molecular”). Aí a atenção desloca-se da técnica para os ingredientes. Agora, dentro dessa tendência de valorização dos ingredientes, é importante apontar um erro comum: despir o ingrediente de significados culturais para revesti-lo de um significado natural. Por exemplo, o pequi e a pupunha. Parecem produtos naturais, mas não são. Eles são produtos de um processo histórico longo de seleção artificial. A pupunha selvagem tinha 5 gramas, e hoje tem 70 gramas. Quem desenvolveu isso foram povos indígenas da Amazônia, por meio de escolhas, conscientes ou não, que transformaram as espécies. São ações culturais, e não naturais. Notar isso é importante porque, desse entendimento, podem sair políticas de preservação, por exemplo. É preciso ter claro que absolutamente tudo o que nós comemos é fruto do trabalho humano. E, se há pessoas envolvidas, elas podem ser prejudicadas por esta ou aquela política e ficam dependentes da consciência que tenhamos sobre essas coisas. Não é apenas a natureza.

E os programas de culinária na TV? O que eles dizem de nós? Há dois tipos de programa. Os educacionais, para pessoas que passaram a comer mais e mais fora de casa e por isso, com o tempo, desaprenderam a cozinhar. Nesse sentido, reaprender é retomar um estilo de vida que tínhamos. E há outro conjunto de programas que é centrado na competição, entre os restaurantes, ou entre futuros chefs, que são esses popstars do momento. Essa é uma onda cultural que explora o interesse da população na culinária para reforçar o que eu considero um dos piores valores do capitalismo: derrotar adversários, subir a partir do fracasso de outros. Apostam na competição e não na solidariedade, e eu considero terrível isso. É um valor cultural que nós não deveríamos incentivar. Há ali pessoas usando a comida como instrumento de guerra. E agora isso vai incluir as crianças, uma ideia ainda pior. A culinária deve apontar no sentido contrário, da camaradagem, da cooperação, do benefício social que pode produzir.

Carlos Alberto Dória, sociólogo, escritor, autor de formação da culinária brasileira Foto: FERNANDO SCIARRA|AE

Por que para as crianças é pior? Fui a um debate há pouco tempo e na plateia havia uma criança de uns 12 anos. Sabia tudo de culinária. E se via claramente que a mãe incentivava a criança a falar. Como antigamente se fazia, colocando as crianças para recitar poesias, tocar piano. Era para promoção do orgulho materno. Hoje, esses programas têm o papel de ganhar os pais por uma perspectiva profissional que eles acham bacana. Tem a ver com reconhecimento social, já que, com a ascensão da gastronomia, aumentou o interesse em tornar-se um chef. Mas esse papel de criança cozinheira é totalmente importado. Não existe isso aqui. No meio rural, há a criança que ajuda a mãe na cozinha e, depois de tanto ajudar, aprende a cozinhar. Porque está vendo, convivendo, independe de educação formal. Tirar isso da família, atribuir a uma escola ou a uma capacitação intensa das crianças para competir, eu acho lamentável. Volto nessa questão: temos de procurar um horizonte de solidariedade, de cooperação, e não de competição, de exclusão. E fomentar isso desde a infância é pior. A criança está sendo socializada, na cozinha e em outras áreas, sem estar preparada. Agora elas vão ser pequenos chefs. É o marketing que propaga esse valor competitivo, não é o desejo autêntico. Criança quer ser motorista, bombeiro, bailarina, quer ser o que o pai ou a mãe são. Evidentemente você pode procurar transformá-la em qualquer coisa. Inclusive em pequenos monstros.

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Mas esses programas não podem fazer com que mais pessoas se interessem pela culinária? Podem criar padrões de consumo novos, mas isso é muito a longo prazo. Porque esses programas não têm um objetivo cultural. É um salve-se quem puder, faça um prato com esse punhado de ingredientes e derrote o seu colega. Para a cultura gastronômica não trazem benefício nenhum. Em um sentido, envolvem as pessoas com processos que elas ignoravam. Mas não há preocupação em explicar os signos. É alienante, pois não é uma prática continuada. São espetáculos. Além disso, criam uma expectativa de que se tornar chef de cozinha é um caminho de ascensão social. Especialmente para a classe média.

O que o senhor acha da graça que fazem com o “raio gourmetizador”? É resultado de um exagero do marketing, que levou à banalização da expressão e ela própria se tornou um instrumento de crítica. As pessoas perceberam, de modo geral, que tudo o que leva o rótulo “gourmet” é mais caro. Só isso. Em que um azeite gourmet se diferencia de um não gourmet? Destacam a acidez do azeite, de 5%, de 2%. Mas só é possível detectar isso em testes químicos. Não muda o sabor. Então, que relevância tem isso na cozinha? Essa gourmetização cria uma cortina que esconde o processo real. Acaba chamando a atenção para detalhes supervalorizados. Por isso eu chamo de entulho gourmet. Essa linguagem que não diz nem esclarece nada. E o marketing tira partido disso, pois não têm interesse no esclarecimento, e sim na confusão.

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