Criminalizar compensa?

Para jurista, debate em torno do aborto não se resume ao 'ser contra' ou 'a favor'

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Por José Henrique Rodrigues Torre
Atualização:
Ética? Jovem buscou atendimento em hospital e foi denunciada pelo médico Foto: Divulgação

Ninguém é “a favor” do aborto! A questão, na verdade, é outra: a criminalização do aborto constitui um meio útil e eficaz para evitar a sua prática?

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Certamente, não. 

A criminalização do aborto, além de ineficaz e inidônea, tem sido a responsável por altos índices de morbidade e mortalidade de mulheres. Todos os anos, no Brasil, são praticados mais de 1 milhão de abortos e quase 300 mulheres, geralmente fragilizadas, pobres e com pouca escolaridade, morrem em razão do aborto inseguro, realizado na clandestinidade exatamente por causa da criminalização. E, quando da morte escapam, muitas mulheres, ao realizarem o aborto sem a devida assistência, sofrem terríveis consequências físicas e psicológicas, ficam estéreis ou têm a saúde comprometida por toda a vida. Praticado em condições inseguras, sob a espada de dâmocles da criminalização, o aborto constitui um gravíssimo problema de saúde pública, que acarreta um enorme custo social para o Brasil e para todos os países que insistem em tratar desse problema no âmbito das políticas repressivas, excludentes, fortalecedoras da violência e reprodutoras de dor e sofrimento. 

A questão há de ser enfrentada, portanto, não no sistema criminal, mas, sim, no âmbito das políticas públicas sanitárias e de empoderamento das mulheres, com educação sexual e reprodutiva e acesso pleno e informado aos meios anticonceptivos. É preciso acolher, não reprimir. A Assembleia-Geral da ONU já reconheceu que a criminalização do aborto, mantida sob o arnês de uma ideologia misógina e androcêntrica de controle da sexualidade feminina, impede a implantação de medidas eficazes de proteção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. O sistema internacional de proteção dos direitos humanos tem afirmado, em inúmeros documentos dos quais o Brasil é signatário, que a criminalização do aborto, além de não ser eficaz para a proteção da vida dos fetos, é incompatível com a garantia do direito das mulheres a eficaz e adequada assistência. Descriminalizar o aborto, pois, não significa aprovar nem estimular sua prática, mas, sim, garantir a autonomia, a dignidade, a vida e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. 

A Corte Europeia de Direitos Humanos e Tribunais Constitucionais de vários países, como Uruguai, Portugal, Colômbia, Alemanha, Bolívia, Estados Unidos e Argentina, já decidiram, em uníssono, que a descriminalização do aborto não é incompatível com a proteção do direito à vida albergado pelos tratados internacionais de direitos humanos. 

Sob a égide da ética civilizatória estabelecida pelos paradigmas do sistema de proteção dos direitos humanos, países que descriminalizaram o aborto, mantendo políticas públicas eficazes de acolhimento e assistência, têm conseguido reduzir as ocorrências de aborto e derrubar drasticamente as taxas de mortalidade e morbidade materna. No Brasil, os serviços públicos de aborto legal não registram mortes de gestantes e, em muitos casos, têm evitado a interrupção da gravidez, garantindo acolhimento e assistência para que, levada a gestação a termo, possa, inclusive, ocorrer a adoção.

A criminalização do aborto está violando os princípios jurídicos e democráticos da idoneidade(a criminalização deve ser útil para enfrentar o problema social que pretende arrostar), da subsidiariedade (a criminalização somente deve ser adotada como última alternativa, quando não houver outras medidas mais eficazes para o enfrentamento do problema que a inspirou) e da racionalidade (a mantença da criminalização não se justifica quando os danos sociais dela decorrentes tornam-se mais graves que aqueles causados pelo problema que se pretendia enfrentar). E há princípios democráticos que impedem a criminalização para a imposição de condutas de modo simbólico ou promocional, para garantir a prevalência de uma determinada concepção moral ou para punir condutas frequentemente aceitas ou praticadas por parcela significativa da população, como ocorre com o aborto. 

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Em face da criminalização do aborto, mulheres brasileiras têm vivenciado uma situação que faz lembrar a mítica estória das danaides, que, condenadas por Zeus a encher uma cisterna com a água de uma fonte, receberam jarros furados. O Brasil ratificou robustos tratados e convenções internacionais de direito humanos e mantém um enorme arsenal de princípios e dispositivos legais e constitucionais protetivos dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Mas, especialmente em razão da perversa lógica da ideologia patriarcal, que se entranha nos sistemas estatais e, em especial, no sistema criminalizador, afastando as mulheres da plena assistência a sua saúde, elas não conseguem exercer esses direitos e, o que é paradoxal, a prática do aborto não é evitada. 

A história das mulheres, construída sob os paradigmas de uma concepção moral ultrapassada e fundada na submissão carnal de gênero e na subordinação entre os sexos, é uma história de violência, dominação e exclusão que tem impedido o pleno exercício de seus direitos. Assim, em respeito à vida e à dignidade das mulheres, não se pode mais admitir que sejam elas tratadas como as danaides e permaneçam condenadas a carregar os seus direitos em jarros furados.

JOSÉ HENRIQUE RODRIGUES TORRES É JUIZ DE DIREITO, PROFESSOR DE DIREITO PENAL E AUTOR DE ABORTO E CONSTITUIÇÃO (LANÇAMENTO EM 19/3). MEMBRO DO GRUPO DE ESTUDOS SOBRE ABORTO, DO GRUPO DE ESTUDOS SOBRE DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DA FEBRASGO E DA REDE GLOBAL DOCTORS FOR CHOICE/BRASIL

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