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Crônica de uma morte à toa, a de Adriano da Fonseca

Para perder a vida no trânsito, você só precisa andar na linha, como ocorreu com o ajudante de sapateiro

Por Christian Carvalho da Cruz
Atualização:

Local do atropelamento e morte do jovem Adriano da Fonseca. Foto: Jose Patrício/AE

 

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SÃO PAULO - No dia em que se tornaria estatística de trânsito, Adriano da Fonseca Pereira, de 20 anos, acordou mais agitado que de costume, às 6 e meia da manhã. Se sonhou, não comentou. Sentado à pequena mesa redonda da sala, de costas para a máquina de costura da mãe e de cara para a parede, engoliu o pãozinho com manteiga de todos os dias e tomou chá com açúcar. Nunca gostou de café. Sua figura alta e esguia enchia o "ovo"- minúsculo e mal ventilado apartamento do Conjunto Habitacional Haia do Carrão, ex-favela, ex-Projeto Cingapura, periferia da zona leste paulistana. Em menos de dez horas Adriano estará morto, jogado no asfalto, o tronco voltado para o meio-fio, as pernas finas retorcidas para trás e os olhos abertos, vítima de mais um atropelamento em São Paulo. Em 2008, informam os gráficos frios da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), foram 7.602, mais de 20 por dia, quase 30% de todos os acidentes de trânsito registrados na cidade. As tabelas também marcam 670 pedestres mortos no período (2 por dia), mas o número pode ser maior. A CET conta apenas os que perecem no local, como Adriano, não os que se vão mais tarde, no hospital.

 

Já vestido com a mesma camisa verde-clara com a qual encontraria o fim, naquela manhã de sábado, 29 de agosto, Adriano só pensava em estrear seu novo xodó: uma Kodak C1013R, 10 megapixel, recém-comprada no carnê das Casas Bahia: nove parcelas de R$ 97, incluindo o seguro de vida que encerra o débito automaticamente se o cliente morrer. Algo que ele certamente pagou pensando em jamais precisar, mas não teve chance de combinar isso com o produtor de eventos Fábio Melgar, de 29 anos. Às 4h20 da madrugada do sábado para domingo, ao volante de um BMW 330i prata que roncava seu motor de 231 cavalos em altíssima velocidade segundo testemunhas, Melgar ignorou o farol vermelho e surpreendeu Adriano numa faixa de pedestres da Avenida Itaquera, zona leste paulistana. Fugiu sem prestar socorro, sem querer saber o destino da camisa verde-clara que lhe espatifara o para-brisa antes de tombar no asfalto, sem desconfiar que uma testemunha ocular do atropelamento o seguia e entregaria seu paradeiro à polícia. Melgar vinha de uma festa de formatura.

 

Também uma festa, mais à noitinha, no apartamento de um vizinho, onde poderia fotografar a valer, era outro motivo da agitação matinal de Adriano. Queria ir com a camiseta do São Paulo, mas a mãe avisou que estava lavando e não secaria a tempo. Ele não esboçou decepção. Tinha pressa de ir treinar cliques e enquadramentos com a câmera nova na sapataria do padrasto, Luiz Carlos Rosa, onde trabalhava como ajudante e recebia R$ 50 em semana boa. Tão logo esvaziou o copo de chá levantou e saiu, sinalizando que ia ajeitar as coisas na sapataria, duas quadras acima.

 

"Ele estava tão feliz, meu Deus do céu", chora a mãe, Luzia da Fonseca, uma costureira e manicure sergipana de 57 anos, rosto vincado, que divide os seis filhos (de dois pais diferentes) pela cor: "Meus três brancos" e "Meus três pretos". Adriano, o caçula, além de "meu pretinho" era "meu mudinho". Ficou surdo e mudo depois de pegar meningite aos 3 anos, suspeita Luzia. Às 2h30 Adriano deixou a festa e na rua encontrou o irmão Leandro. Mostrou-lhe o dedo anular direito e juntou as mãos próximas ao rosto para dizer que dormiria na casa da namorada, futura noiva, numa rua próxima. Os dois se abraçaram e se beijaram, para estranhamento de Leandro: "Ele odiava ser beijado pelos irmãos homens, morria de vergonha". Dessa vez, Adriano retribuiu o beijo e abraçou longamente o mano. "Parecia uma despedida, tá ligado?, mas eu não imaginava."

 

Não longe dali o taxista Marcelo Cunha, de 39 anos, tentava defender a féria do dia. Com R$ 180 feitos até então, teria que amanhecer trabalhando, talvez numa corrida intermunicipal se tivesse sorte, para completar os R$ 400 a que se propusera. Quando encostou no ponto da Avenida Celso Garcia, no Tatuapé, agradeceu por não ter almoçado a costumeira feijoada. Com o estômago leve, calculou, seria mais fácil encarar o chamado que o rádio trazia: às 4h30 um passageiro iria de Santo Amaro, zona sul, à cidade de Atibaia, uns R$ 200 pelo menos. Cunha se posicionou para atendê-lo. "Mas antes entrou uma corrida de momento e como eu era o único do ponto tive que ir. Um moço saindo do hospital, três quarteirões só, 10 merréis", lamentou.

 

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Perdidos os R$ 200 da Santo Amaro-Atibaia, Cunha achou melhor ir dormir. Eram 4h20. Na Avenida Itaquera, caminho de casa, assustou-se quando um vulto cinza lhe cortou pela direita, furando o farol vermelho. O BMW de Melgar ensaiava para, no semáforo fechado seguinte, fazer três destinos se cruzarem tragicamente. "De longe vi um saco de latinhas de alumínio subindo e se espalhando pelo chão. Ele estava fácil fácil a uns 150 km/h", descreve o taxista. "Não teve grito, só um tranco e barulho de metal rolando", relata Egídio Dantas, que acabara de fechar o seu Bar e Lanchonete Irmãos Dantas, na frente do local do atropelamento. A família de Adriano não consegue entender o que ele fazia ali, distante 15 km de casa e ainda por cima recolhendo latas. "Meu mudinho era pobre mas muito luxuoso", diz Luzia. "Não era dele pegar lixo."

 

Se Melgar vinha mesmo a 150 km/h, coisa que a perícia policial deve responder em 30 dias, Adriano não teve a mínima chance. A Curva de Ashton, um gráfico adotado mundialmente pelos departamentos e estudiosos do trânsito, mostra que em um atropelamento a 32 km/h a probabilidade de o pedestre morrer é de 5%. No dobro da velocidade, 64 km/h (ou seja, menos da metade dos 150 km/h em questão), o índice de morte vai a 85%. Adriano, portanto, tampouco teve tempo de pensar em seu primeiro atropelamento, aos 7 anos, quando jogava bola na rua, perto demais de uma curva fechada. Nada sério, arranhões furrecas, mas o motorista gente fina o levou ao hospital, comprou os remédios, o trouxe para casa e ainda voltou na semana seguinte para ver se estava tudo beleza.

 

Melgar, ao contrário, tentou escapulir. E talvez tivesse conseguido não fosse o taxista Cunha, um ex-guarda civil metropolitano que desde menino sonhava ser policial civil. "Prestei concurso pra carcereiro, agente, tudo, mas nunca passei." Ao ver Melgar "evadir-se" - para usar suas palavras de tira frustrado - "empreendeu perseguição" até vê-lo estacionar o BMW em frente de casa, no Jardim Brasília, de novo na zona leste. Cunha memorizou a placa, "dado-golfe-bravo-vinte-e-cinco-cinco-cinco", e chamou a polícia de verdade. "Me tratam como herói e não sei o quê", reclama. "Mas não tem essa de herói não, cara! Fiz o que fiz para poder continuar vivendo sem ter do que me envergonhar perante meus três filhos. Prefiro que me chamem de cidadão, falou?", dispara o taxista careca, cara de bravo, sem tirar os óculos escuros de Kojak.

 

A cidadania de Cunha possibilitou que Melgar fosse preso em flagrante em meio a um tremendo mafuá. Ele agrediu um policial militar com uma cabeçada e também com "palavras de menoscabo", segundo a peculiar linguagem dos boletins de ocorrência: "Seu negrão, preto macaco, safado, corrupto, você é polícia porque não estudou e não perde por esperar". Indiciado por homicídio culposo (sem intenção de matar) na direção de veículo automotor, fuga de local de acidente, embriaguez ao volante e desacato (as penas máximas somadas dariam 11 anos de detenção), o empresário passou dez horas preso e foi embora depois de pagar fiança de R$ 1.228,20. Vai responder ao processo em liberdade.

 

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Em depoimento, disse que só tinha tomado "coquetéis não alcoólicos" - ele fez exame de sangue no IML, resultado em um mês - e que se retirou "do sítio dos fatos" porque sua namorada, sentada no banco do passageiro, estava suja de sangue e gritava desesperadamente. Na tarde seguinte, Melgar saiu da delegacia como se ainda estivesse arrumado para a festa: camisa branca para dentro da calça cinza risca de giz e os cabelos castanhos com mechas louras penteadas para cima. A tresloucada eloquência parece ter ficado com seu pai, Douglas Melgar: "Ele toma umas. Esse menino é bala na agulha. Isso foi um acidente", teria dito, segundo o jornal Diário de S. Paulo. Eram 16h do domingo, 30, e só dali a cinco horas o IML liberaria o corpo destroçado de Adriano.

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Ao mesmo tempo em que Melgar ganhava a rua, os Fonsecas desmoronavam diante da TV: a Rede Globo noticiava o atropelamento e mostrava uma fotografia de Adriano criança, a da sua carteira de identidade. "Foi como um trem passando aqui na sala e destruindo tudo", comparou o padrasto, Luiz Carlos. Luzia precisou ser contida para não cair. Leandro arrebentou as portas espelhadas do guarda-roupa aos pontapés. A revolta aumentava na mesma proporção dos detalhes: "Esse playboy nem esquentou o xilindró, riquinho dirigindo carrão, fugiu largando meu irmão lá, bateu em policial. Quando a PM baixa aqui no conjunto a gente fica pianinho pra não levar porrada, mesmo sem ter feito nada de errado", enervou-se Leandro. "Cuidado com a língua, menino", pediu Luzia. "Vou falar, sim, mãe, dane-se! A senhora dá licença? Posso abrir meu coração? Nem cachorro vira as costas pros outros desse jeito, tá ligado? Cachorro, mano, cachorro vai lá e cheira para ver se está vivo. Eu quero justiça."

 

O advogado José Beraldo, indicado à família pela TV Record, diz que tentará reverter o caso para homicídio doloso (em que se assume o risco de provocar uma morte), a fim de levar Melgar a júri popular. "Quem se embriaga e dirige um veículo a 150 km/h numa via onde a velocidade máxima permitida é de 70 km/h deve ser julgado como criminoso comum, não como delinqüente de transito", opina Beraldo. "De fato o Código Brasileiro de Trânsito é brando ao tratar dos atropelamentos, cria a sensação de impunidade", afirma o promotor de justiça José Carlos Blat. "Mas é o que existe e, na falta de mudanças, deve ser respeitado. A autoridade policial agiu corretamente, autuando o atropelador em homicídio culposo e concedendo a fiança prevista na lei."

 

Melgar não quis dar entrevista. Seu irmão e advogado, Douglas Pereira Melgar, disse que "ele está deprimido, sofrendo ameaças de morte, falando em suicídio, até voltou a morar com a mãe". Falou mais: "Esse fato só ganhou essa dimensão porque ele dirigia o BMW do sócio dele; se estivesse de Fusca não seria assim". Farol que abre, farol que fecha, vidas que seguem a pé. Amanhã 20 delas serão atropeladas em São Paulo.

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