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Cuba libre

Germe corrosivo do mercado penetrará nas veias agora abertas desta ilha ideológica e ela não mais será a mesma, diz sociólogo

colunista convidado
Por José de Souza Martins
Atualização:

O restabelecimento de relações diplomáticas dos EUA com Cuba e as decorrentes medidas de desaquecimento das tensões entre os dois países constituem fatos auspiciosos, ainda que tardios. As medidas são decisivas no sentido de reinserir Cuba no cenário internacional como país soberano. A Revolução Cubana foi, na verdade, uma revolução para completar e confirmar a independência do país que, ao deixar de ser colônia da Espanha, tornou-se colônia dos EUA, país que promoveu e patrocinou essa independência por conveniência própria.

Raúl e Obama: com retomada de relações, capitalismo por todos os lados Foto: JONATHAN ERNST/REUTERS

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A hostilidade americana à revolução de 1959 teve papel decisivo para tornar o país insular uma peça importante na geopolítica da Guerra Fria, jogando-o nos braços da União Soviética, de que virou dependente. Cuba tornou-se uma ilha bloqueada ao Ocidente por quase todos os lados, como se tornará agora uma ilha politicamente socialista cercada de capitalismo por todos os lados. É verdade que já não se faz socialismo como o de antigamente, como tampouco se faz capitalismo como o da literatura panfletária de doutrinação que ainda inspira rebeldias e ímpetos revolucionários. 

O socialismo cubano tem uma história peculiar. O isolamento e a estranha presença soviética, quase que meramente militar, foram decisivos para que os cubanos inventassem seu próprio socialismo e criassem uma sociedade repressivamente justa no que outras sociedades falharam. Alfabetizaram, em curto tempo, quase toda a população. Valorizaram a educação, que deixou de ser privilégios para ser direito e dever. Valorizaram a cultura e nela a literatura, a poesia, o romance, o conto. Criaram grupos locais de poesia, simples trabalhadores reunidos em fins de tarde, embaixo de uma árvore, como vi na Ilha de Pinos, para declamar seus versos e ouvir os alheios. Valorizaram o documentário cinematográfico, de que se tornaram mestres. Não desdenharam as manifestações do espírito. O regime não hostilizou as religiões, embora tenha sido hostilizado por elas. 

A fuga e a deserção de grande número de cubanos em direção a Miami contribuiu para acentuar uma uniformidade ideológica interna e consequentemente uma redução do direito à diferença. A Revolução Cubana, como revolução de constituição e fortalecimento da nacionalidade, acabou centrada no socialismo. Ser cubano e ser socialista se transformaram numa consigna comum. Defender a pátria por meio da defesa da revolução encontrou no bloqueio americano um inimigo ameaçador que se tornou fator de mobilização permanente de quase toda a população, especialmente dos jovens, em torno da pátria e pátria socialista. 

Cuba fez de sua economia de mínimos vitais a base de seu socialismo, ideologicamente anticonsumista. Comida na mesa para todos, leite para todas as crianças, assistência médica e farmacêutica sem restrições. Ainda que tudo regulado pelo disponível. Presenciei na Casa de Las Américas, em Havana, a exposição de um ministro de Estado sobre o modo como era organizada essa economia. Uma jovem cubana questionou o ministro. Não passava fome, mas era obrigada a comer lentilhas em vez de feijão. Ela fora habituada a comer feijão e odiava lentilhas, feijão que agora faltava. Ele explicou-lhe que a produtividade do feijão era ameaçada por pragas. Não era possível correr risco de não ter feijão para todos, enquanto o mesmo risco não havia em relação à lentilha, um alimento substitutivo. 

Esse socialismo de fome zero pode ser nutritivo, mas não alimenta o imaginário da alimentação nem com ele dialoga. Há uma estética do comer, um dos ingredientes da liberdade, mesmo que liberdade tola: Cuba teve que inventar uma falsa Coca-Cola para não ser derrotada politicamente pela carência do refrigerante americano.

Em 1982, numa conversa com os membros do júri do Prêmio Casa de las Américas, a que estive presente, Fidel orgulhava-se de que Cuba fosse uma das sociedades “más sanas” do mundo. Referia-se à inexistência da prostituição e da droga. Hoje não é bem assim. Clandestinamente, Cuba também enveredou pelo mau caminho para chegar ao mundo moderno. Não esperou pela suspensão do bloqueio e do levantamento do veto americano. Sociedade centrada na negação dos valores da sociedade de consumo, estabeleceu um sistema de remuneração do trabalho circunscrito ao essencial, mas que não habilita ninguém a integrar-se no consumismo inevitável que, mais cedo ou mais tarde, decorrerá da suspensão da barreira geopolítica. Terá a vantagem comparativa do trabalho barato para produtos de exportação, como ocorre com os chineses, as insuficiências salariais recompensadas com itens básicos a preços estatizados e controlados. Mas o germe corrosivo do mercado penetrará nas veias agora abertas dos guajiros de José Martí e essa ilha ideológica nunca mais será a mesma.

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JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE UMA SOCIOLOGIA DA VIDA COTIDIANA (CONTEXTO)

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