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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Da cor da coca-cola

Se fosse branco, Roquel ‘Billy’ Davis, do jingle do final de ‘Mad Men’, seria mais festejado

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Atualização:

Don Draper afinal saiu de cena gloriosamente. Ao contrário do que previa (e temia) Matthew Weiner, criador de Mad Men, seu epílogo não decepcionou a clientela. O que muitos esperavam (e receavam) afinal não se confirmou. Don Draper não se estatelou na calçada da Madison, nem saiu para sempre de cena envolto numa elíptica névoa de ambiguidade, como Tony Soprano, oito anos atrás. 

 Foto: REPRODUÇÃO

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Iluminado pelos eflúvios de um retiro espiritual semelhante ao Esalen, Don redescobre sua vocação para “mad man”, reassume seu posto na agência McCann Erickson e simplesmente cria o comercial de maior empatia da década de 1970. Não foi um desfecho prenunciado (“Por que não terminar uma série sobre o mundo publicitário com o melhor comercial de todos os tempos?”, ponderou Weiner), embora o produto, este sim, estivesse cotado para nova aparição. Betty Draper estrelara um comercial da Coca-Cola na primeira temporada; o refrigerante despontara em dois diálogos da temporada final e na sequência do motel no penúltimo episódio. Não bastasse, a conta da Coca-Cola pertencia (e ainda pertence) à McCann.

Os birutas das redes sociais que puseram em dúvida a autoria do comercial, atribuindo a façanha a Peggy Olson, calaram o bico tão logo ficou claro que a única controvérsia possivelmente gerada pelo final de Mad Men não envolvia um publicitário do sexo feminino, mas um publicitário da cor da Coca-Cola. 

Lá pela quarta temporada, implicaram com a escassez de personagens negros em funções não subalternas. Em abril a revista Ebony reprisou a cobrança. Ora, na década de 1960, aos negros americanos só sobrava a xepa do mercado de trabalho. Na agência Sterling Cooper e arredores, não passariam mesmo de ascensoristas, secretárias e faxineiros. Não sei se de caso pensado, Weiner abriu e fechou Mad Men com dois negros, um fisicamente presente (o garçom que, na primeira fala da série, pergunta a Don se ele já terminou seu drinque) e outro espiritualmente incluído no grand finale musical. 

Por trás de Ensinando o Mundo a Cantar, o mais badalado jingle da Coca-Cola, não estava apenas a figura do caucasiano Bill Backer, que há 45 anos era diretor de criação da McCann, mas um estranho no ninho publicitário: Roquel “Billy” Davis, diretor musical da agência. Davis, morto em 2004 aos 72 anos, talvez seja o melhor exemplo da lenta integração dos negros no mundo da publicidade. Foi ele quem deu forma e musicou a ideia que Backer, apresentado desde segunda-feira pela mídia como “o verdadeiro Don Draper”, intuíra não em um resort espiritualista da ensolarada Califórnia, mas na manhã seguinte a um forçado pernoite cercado de neve num aeroporto irlandês, em janeiro de 1971. 

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Impressionado com o festivo consumo de Coca-Cola pelos passageiros ilhados no aeroporto, Backer pensou num comercial em que “a pausa que refresca” também pudesse conotar felicidade e harmonia entre pessoas das mais variadas procedências e etnias. Davis reescreveu uma canção da dupla inglesa Roger Cook / Roger Greenaway, que, com o título de I’d Like to Teach the World to Sing (in Perfect Harmony), reluziu nas vozes de um coral formado pelos New Seekers e os Hillside Singers. Gravado numa colina italiana, com figurantes das mais variadas procedências e etnias, aquele que já era o mais elogiado comercial da Coca-Cola tornou-se, desde o último episódio de Mad Men, o mais visto de todos os tempos.

Davis colaborou na criação de outros slogans históricos: “Isso é que é”, “Tudo vai melhor com Coca-Cola”, “Abra um sorriso; Coca-Cola dá mais vida”. Antes de virar publicitário deixara sua marca na história da música pop, juntando o blues ao rock, compondo para Jackie Wilson (Lonely Teardrops) e Fontella Bass (Rescue Me), lançando selos independentes e uma legendária gravadora (Motown), associando seu nome ao de Chuck Berry, Bo Diddley e Aretha Franklin. Foi um dos bambas da soul music. Se fosse branco estaria sendo tão festejado quanto o “verdadeiro Don Draper”, Bill Backer, ainda vivo numa fazenda na Virginia, beirando os 90 e cheio da grana.

Opinião por Sérgio Augusto
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