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Da euforia ao mal-estar

Só a prefeitura não sabia queo mar bravio provoca estragos e fatalidades no Rio de Janeiro desde os tempos de Capitu

Por Sérgio Rodrigues
Atualização:

Os famosos “olhos de ressaca” de Capitu, uma das imagens mais famosas da literatura brasileira, não parecem dever nada ao mal-estar generalizado que acomete quem bebeu demais na véspera. Digo que não parecem porque, tratando-se de Machado de Assis, a cautela recomenda evitar afirmações categóricas: empacotar o máximo de sentido em um mínimo de palavras era com ele mesmo. Mas tudo indica que a acepção alcoólica de ressaca só surgiu no século 20, o que deixa para as botucas da titilante personagem de Dom Casmurro, romance lançado em 1899, apenas o sentido que o Houaiss define como “forte movimento das ondas sobre si mesmas, resultante de mar muito agitado, quando se chocam contra obstáculos no litoral”. Ou seja: aquilo que açoitou a costa do Rio de Janeiro no último dia 21, feriado de Tiradentes, e que levou embora um naco da recém-inaugurada ciclovia Tim Maia, duas vidas humanas e o resto de credibilidade que o prefeito Eduardo Paes tinha como mestre de obras da “Cidade Olímpica”. Aí, sim, podemos garantir que à ressaca literal se somou a figurada. E que esta dor de cabeça não passará tão cedo.

Machado era um craque em trabalhar com ambiguidades, a começar pela indeterminação eterna que gira como uma ventoinha no coração de sua obra-prima, condenando os leitores a jamais saber se Capitu traiu ou não traiu Bentinho (minha opinião é que, se traiu, foi bem feito). No caso do olhar da moça, porém, a imagem marítima é explícita: “Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca”, diz o doutor Bento Santiago sobre os olhos da jovem amada no trecho inicial do romance, quando tudo é calmaria. “Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.” A ambiguidade vem mais tarde, infalível como a subida da maré. Sendo basicamente um canalha, o narrador nada confiável retoma lá na frente a mesma metáfora, mas agora sem a inocência dos tempos de namoro, ao descrever sua mulher ao lado do caixão do amigo Escobar – que morreu afogado numa ressaca, justamente – tentando tragar o defunto com os olhos como fizera o oceano.

  Foto: Fabio Motta | ESTADAO CONTEUDO

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Se nos faltam elementos para dizer quão recatada era a bela Capitu, uma coisa é certa: Machado ensina que ressacas provocam estragos materiais e fatalidades no litoral carioca pelo menos desde março de 1871, quando Escobar foi vaidosamente imprudente (“Tenho entrado com mares maiores, muito maiores”) e se afogou na praia do Flamengo. Em contagem mínima e conservadora, vaidade e imprudência são dois dos pecados por trás da tragédia da ciclovia Tim Maia. É provável que devam ser acrescentados à lista uma incompetência técnica alarmante, a leitura deficiente de Machado de Assis e o desconhecimento da conturbada história da relação do Rio de Janeiro com suas ressacas (a de 1913 foi tão violenta que entrou para o território da lenda). O fato de a empreiteira Concremat, que realizou a obra a um custo de R$ 45 milhões, pertencer à família do secretário municipal de Turismo, Antônio Pedro Viegas Figueira de Mello, indica que essa lista pode ir mais longe. Seja como for, hora de passar à acepção figurada.

O mal-estar está para a bebedeira que o precede como a sujeira deixada na areia da praia está para a agitação do mar que a provocou. Os dicionários de português não registram essa acepção intermediária, mas em espanhol – língua onde fomos buscar a palavra no século 16 – resaca tem, entre outros, o sentido de “limo ou resíduos que o mar ou os rios deixam na margem depois de transbordar”. Afinal, a expressão saca y resaca quer dizer antes de mais nada “fluxo e refluxo” das ondas, seu movimento de leva-e-traz. Não por acaso, a incômoda acepção pós-orgia existe também na língua de Sancho Pança, que enxugava tonéis de vinho como poucos. A ressaca alcoólica, bem como a moral, é portanto a conta deixada pela festa, o emaranhado nada divertido de resíduos que sobra na margem depois de passada a diversão. A mesma ideia está presente no inglês hangover, palavra que, não se ligando propriamente ao mar, compartilha com a ressaca tanto o sentido de resíduos deixados para trás quanto o de “dor de cabeça forte ou outros efeitos retardados da ingestão excessiva de álcool” (dicionário Oxford).

Estará justificado quem, procurando a origem da ressaca carioca e brasileira deste momento, retroceder além da euforia obreira de preparação para os Jogos Olímpicos e for bater na porranca nacionalista que, nos anos Lula, moveu a vitoriosa candidatura do Rio junto ao Comitê Olímpico Internacional e a própria ideia de que o Brasil, mais do que estar no caminho certo, já tinha chegado lá. Como provam nossa enrascada política e a ressaca moral que se seguiu à votação do impeachment na Câmara, com seu deprimente clima de circo, o País só podia estar bêbado. Haja Engov.

SÉRGIO RODRIGUES, JORNALISTA, CRÍTICO LITERÁRIO E ESCRITOR, É AUTOR DO ROMANCE O DRIBLE (COMPANHIA DAS LETRAS), VENCEDOR DO PRÊMIO PORTUGAL TELECOM DE 2014