Palavra do Mês: 'boicote'

Origem do termo é tão boa que daria um filme – e uma polêmica, já que seria difícil encontrar papel para um ator negro na trama

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Por Sérgio Rodrigues
Atualização:
Os 20 atores e atrizes indicados ao Oscar este ano Foto: STAFF | REUTERS

“Boicote” começou a virar a Palavra do Mês no último dia 18, quando o diretor Spike Lee anunciou que, mesmo tendo recebido um Oscar honorífico há dois meses, não comparecerá à cerimônia de entrega do grande prêmio do cinema americano no próximo dia 28. Motivo: pelo segundo ano consecutivo, não há um único negro entre os vinte atores que disputam estatuetas. O diretor de Faça a Coisa Certa disse que não pretendia ser o líder de um movimento contrário à premiação da Academia de Artes e Ciências de Hollywood, mas observou que o cinema está atrasado em relação à música e ao esporte no combate ao racismo – o que é inegável – e invocou o poder da oratória de Martin Luther King: “Chega um tempo em que é preciso tomar uma posição que não é nem segura, nem política, nem popular, mas é preciso tomá-la porque a consciência nos diz que é a certa”.

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Pronto. Entre nomes de menor peso, a adesão de Will Smith – arregimentado por sua mulher, a atriz Jada Pinkett Smith – deu ao time do protesto um astro de primeira grandeza e ajudou a garantir que a palavra “boicote” dominasse pelas duas semanas seguintes o noticiário de entretenimento nos EUA. As tradicionais especulações sobre filmes e atores favoritos, que a esta altura deveriam estar pegando fogo? Relegadas a um frio segundo plano. Ian McKellen, gay militante, lembrou que a discriminação em Hollywood atinge os homossexuais também. A alva Charlotte Rampling, uma das concorrentes, apontou “racismo contra os brancos” no boicote – ideia que, mais do que questionável, é burrinha mesmo, equivalente a dizer que feminismo e machismo são só dois lados da mesma moeda.

Isso não significa que a questão seja desprovida de matizes cinzentos entre preto e branco. Hollywood é uma indústria portadora de menos melanina do que a média da sociedade americana, sem dúvida, mas o problema vai além do que Spike Lee apontou: também não há hispânicos ou asiáticos concorrendo este ano ao bonequinho careca, embora estes levem a desvantagem de ser menos curtidos do que os negros numa tradição de luta por igualdade de direitos. Seja como for, até o presidente Barack Obama entrou no debate, dizendo que a diversidade é melhor para a arte. E hoje a especulação mais excitante no arraial de Los Angeles gira em torno do que dirá sobre o bafafá o comediante Chris Rock, mestre de cerimônias negro de uma festa branquíssima. Há quem lhe cobre adesão ao boicote – o que seria bombástico, mas parece improvável. De piadas polêmicas envolvendo os nomes citados acima será difícil escapar.

A Academia acusou o golpe. Não chegou ao extremo de instituir uma política de cotas para os indicados, ainda bem, mas fez mais do que vagas promessas de justiça: anunciou medidas para rejuvenescer e abrir às minorias o elenco de 6.261 membros com direito a voto (hoje estima-se que mais de 90% sejam brancos, com a idade média situada acima de 60 anos), revogando a vitaliciedade automática. Em outras palavras: quem ficar inativo por mais de uma década dança. (Até o momento não há sinais de um boicote proposto por atores e cineastas da terceira idade, mas talvez seja questão de tempo.)

Tudo isso volta a demonstrar o que ficou fartamente provado desde que a palavra inglesa boycott ganhou seu primeiro registro como substantivo comum, em fins do século 19: a coisa costuma funcionar. Que o diga o homem que batizou – à sua revelia, é verdade – essa forma de protesto. O inglês Charles Cunningham Boycott (1832-1897), capitão reformado do exército britânico, trabalhava como administrador das vastas extensões de terra de um nobre inglês no oeste da Irlanda quando bateu de frente com a Irish Land League, o combativo sindicato de trabalhadores rurais, que lutava pela redução dos custos de arrendamento para seus associados. Corria o ano de 1880, momento histórico de grande agitação política e sindical em diversas partes do mundo. O milico não quis saber de conversa. Nem um penny a menos, decretou.

Não terá sido o primeiro boicote da história, mas foi o que primeiro ganhou o nome de boycott (a palavra chegaria ao português, com a grafia já aclimatada, em 1913). Os arrendatários de Boycott foram os primeiros a aderir ao gelo comandado pela Irish Land League, recusando-se a trabalhar para ele. Não demorou para que o movimento se espalhasse: logo lhe negavam atendimento no comércio local e até sua correspondência deixou de chegar. O caso chamou a atenção da grande imprensa londrina, que lhe deu intensa cobertura de viés nacionalista, torcendo por Boycott. Não adiantou. A colheita nas terras administradas pelo homem foi feita com atraso por trabalhadores trazidos de longe, sob a proteção de centenas de soldados ingleses. Poucos meses depois, Boycott foi embora da Irlanda para nunca mais voltar.

O caso é tão interessante que admira não ter virado até hoje um dramalhão histórico hollywoodiano. Quem sabe algum produtor abra o olho agora que a palavra “boicote” roubou a cena. Difícil será encontrar papel para um ator negro nessa história.

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SÉRGIO RODRIGUES É JORNALISTA, CRÍTICO LITERÁRIO E ESCRITOR. AUTOR DO ROMANCE O DRIBLE (COMPANHIA DAS LETRAS)

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