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Delta Fox a bordo

Cadeirante que subiu escadas de avião sozinha rejeita qualificação de guerreira ou oportunista

Por Juliana Diógenes
Atualização:
Ossos de cristal. É a segunda vez que Katya tem de "improvisar" seu embarque Foto: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

Um degrau já foi, faltam 14. Katya Hemelrijk apressa o passo – quer dizer, o bumbum. Pensa apenas em alcançar logo o topo da escada, de preferência sem quebrar os ossos. Bastam as mais de 200 fraturas sofridas ao longo de 38 anos. Alcança outro degrau. “Poxa vida, isso de novo?”, suspira. É a segunda vez que ela usa a bunda para subir as escadas em um aeroporto e, assim, entrar no avião. Sob o fino sereno das 5h da manhã no Aeroporto Internacional de Foz do Iguaçu, suas mãos reconhecem a frieza dos degraus de alumínio. De costas para a aeronave, Katya vai subindo, sentada. No pé da escada, o marido, Ricardo Severiano, parece cada vez menor à medida que ela sobe. 

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A cena constrange à primeira vista, mas para uma cadeirante com osteogenesis imperfecta, a doença dos “ossos de cristal”, é rotina subir escadas de bumbum, o modo mais seguro de ter o controle do próprio corpo. Se carregada pelo marido, um tropeção na escada poderia ser fatal. Três senhoras atrasadas se aproximam. Katya percebe e interrompe a saga. O marido se coloca no meio da escada e os dois pedem que elas aguardem a conclusão da subida. Não havia funcionários para fiscalizar a situação, segundo Kaya, então Ricardo teve de fazer o serviço.

“Passaram-se seis anos desde a primeira vez que subi de bunda em Congonhas. É muito tempo para não fazerem nada. As coisas não evoluem?”, pensa, ensaiando a subida para o próximo degrau. “Amor, tira uma foto minha?”, pede ao marido. Click! Lá está Katya, coordenadora de comunicação da Natura, a Delta Fox, no meio da escalada de 15 degraus. Delta Fox – no alfabeto fonético, delta é a letra D e fox, o F – é o código usado por profissionais de segurança, bombeiros e, neste caso, funcionários da aviação, para categorizar deficientes físicos. No canto direito da imagem que rodou a internet essa semana, há três letras de cor laranja na aeronave: GOL. Ao fundo, aeromoças cochicham. Conversariam sobre o fato de a companhia ter esquecido de que havia uma Delta Fox no voo?

Após um fim de semana nas Cataratas do Iguaçu, na segunda-feira passada Katya chegou ao aeroporto às 4h20. Antecipou-se em uma hora para despachar a mala e a cadeira de rodas. No balcão do check-in, um funcionário da Gol diz no rádio: “Delta Fox a bordo do voo 1076”. O colega responde: “Stair trac descarregada”. 

Ih, ferrou, disse Katya. Stair trac é uma esteira para cadeiras de rodas. Funciona à bateria. “Coloca para carregar uma horinha que ao menos subir, sobe. E depois vocês se viram para descer”, Katya aconselhou. O funcionário teria dito para ela ficar tranquila e seguir para a sala de embarque, pois a companhia iria providenciar. 

Em nota, a GOL disse que “tentou com as outras empresas conseguir o equipamento, o que também não foi possível”. A Azul, que não tem o stair trac no aeroporto, disse não ter sido procurada – assim como a Infraero, que no entanto possui o equipamento em Foz. A TAM confirmou a consulta, mas, também em nota, informou que o equipamento já estava em uso naquele momento. 

Com o equipamento descarregado, restaram então três opções à GOL: levar Katya nos braços, amarrá-la com um cinto na cadeira de rodas e subir carregada por quatro funcionários ou aguardar três horas – o tempo de dar carga na stair trac – e embarcar no voo seguinte para São Paulo. Opções negadas pela passageira. “Meus ossos não têm cálcio, quebram fácil. Se alguém tivesse que me pegar ali, seria meu marido. É superconstrangedor alguém que não te conhece ficar te pegando. Sou uma mulher, né? Não é legal. E qualquer um está sujeito a tropeçar. Se eu cair de mau jeito, pode ser fatal. A forma menos constrangedora em que me sentiria menos invadida seria subindo daquela forma, de bunda.” 

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Acostumada à empreitada, Katya fez dois pedidos à companhia: que buscassem sua mala para pode vestir uma calça legging, pois estava de vestido, e que embarcassem primeiro todos os passageiros para evitar uma plateia estressada. Assim foi feito. 

Já no trabalho, em São Paulo, Katya recebeu a fotografia do marido e postou no Facebook. “Toda vez que passo por alguma situação muito constrangedora ou muito bacana, peço para tirarem uma foto. Também tenho foto do stair trac funcionando e fazendo joinha. O que não fazia era postar. Mas foi a segunda vez que passei por isso. Pensei: de novo? Não precisa, né?” 

Ela não imaginava o rebuliço que causaria nas redes sociais. E detestou o uso do verbo “se arrastar” nas notícias. “Porra, não sou minhoca!”. Também refuta a ideia de que passou por uma humilhação ao subir as escadas de bunda. “Não sou uma heroína nem uma oportunista sem vergonha, como comentaram. Ninguém entendeu que aquela era a solução natural.” O que não deve ser natural, diz, é o despreparo das companhias aéreas para atender um Delta Fox.

A diretora da Associação Brasileira de Osteogenesis Imperfecta (Aboi), Adriana Dias, também portadora da doença, teria feito o mesmo no lugar de Katya. Para ela, a falta de treinamento dos funcionários e a dificuldade de lidar com as diferenças entre as 8 mil doenças raras existentes são as causas do ocorrido em Foz do Iguaçu. Em parceria com a Aboi, Katya agora luta para que, caso se concretize, a multa da Anac à GOL e à Infraero, de R$ 300 mil, seja revertida em capacitação de profissionais e compra de novos equipamentos. “Não quero tirar vantagem, dinheiro ou passagem de graça. Quero que menos gente passe pelo que passei.”

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