Descaso da pior espécie

A epidemia de zika tem como vítima uma população negligenciada das políticas de saúde brasileira: as mulheres

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Por Debora Diniz
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O anúncio foi feito pelo ministro da Saúde, “perdemos a batalha para o mosquito”. A linguagem foi bélica; o tom, de entrega das armas. Marcelo Castro já havia pedido às mulheres que não engravidassem, torcido para que se infectassem antes da idade fértil, pois não há vacina para milhões, e no mais terrível desarranjo mental anunciou que “teremos uma geração de sequelados no Brasil”. Como não consigo seguir o ministro nem na linguagem nem nos modos, organizo o pânico causado pelo zika em outros termos.

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Em saúde pública, não há guerra perdida. Não foi assim com a sífilis, não é com o HIV, já não foi com o Aedes. O retorno do mosquito é o final de um longo percurso de negligência do Estado brasileiro com a saúde – em 1955, fomos capazes de eliminar o mosquito. Não havia vacina, e o principal método de controle era o atual: matar o vetor e garantir que as fronteiras estivessem livres do inseto. Ele voltou à cena, mas, em 1973, eliminamos de novo o maldito. Em 1976, o mosquito retornou e nunca mais nos abandonou. Dizem especialistas que foram falhas na vigilância epidemiológica, a crescente urbanização do país; talvez até hipóteses de aquecimento global caibam aqui.

O que houve, de fato, para sermos perdedores no que deveria ser um processo crescente de proteção à saúde? Negligência das políticas públicas. Não é o dono da bacia esquecida no quintal de uma casa na periferia do Nordeste o responsável pelo retorno do mosquito enfurecido, mas o Estado, que, sistematicamente, ignorou as consequências de uma epidemia para a saúde pública. Limpar terrenos, esvaziar bacias, usar repelentes são maneirismos de quem passou a conviver com o mosquito. Mas são também estratégias de encobrimento das causas históricas do retorno da epidemia: passamos a olhar para cada um de nós, para a casa do vizinho, e apontar o dedo para o que as políticas adoram nomear como “responsabilização individual” pela saúde pública. Ora, não há isso de responsabilidade individual em um caso flagrante de negligência epidemiológica.

Convivemos há décadas com manchetes de surto de dengue, crianças e velhos adoecidos, hospitais abarrotados. A novidade é que o mosquito carrega outra doença, o zika vírus. Os sintomas seriam uma dublagem da dengue não fosse a forte hipótese de que, em grávidas, o vírus pode causar microcefalia no feto. O pânico foi global: compara-se o zika ao ebola, não na transmissão da doença, mas no medo das consequências do adoecimento. Países vizinhos tiveram pronunciamentos oficiais ainda mais originais que o do ministro da Saúde brasileiro: El Salvador recomendou infecundidade populacional até 2018. Imagino a seguridade social desses países. Como o tema agora é outro, preciso repetir: pedir às mulheres que não engravidem não é política de saúde séria.

A Colômbia é voz original no cenário latino-americano: o ministro da Saúde esqueceu isso de controlar úteros e falou sobre a possibilidade de o aborto ser autorizado nesses casos. Assim como no Brasil, o aborto é criminalizado na Colômbia, sendo permitido em situações como estupro ou risco de saúde para a mulher. Sei o quanto aproximar a questão do aborto do pânico do zika pode potencializar a controvérsia, mas não seria uma medida justa de saúde? Há dano objetivo à saúde das mulheres por uma negligência histórica e sistemática do Estado com a saúde pública. Diferentemente dos maus modos do ministro, o aborto não seria um direito reprodutivo porque teremos uma “geração de sequelados”, mas porque reconhecemos a capacidade das mulheres de decidirem sua vida reprodutiva em uma tragédia epidêmica. E, mesmo na hipótese de se reconhecer o direito ao aborto nesses casos, teremos crianças com microcefalia, seja porque as mulheres optarão por não interromper a gestação, seja porque não terão acesso ao diagnóstico precoce.

Novamente, não são “sequelados”, mas crianças com deficiência. O Brasil é signatário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e um de seus compromissos constitucionais é a plena inclusão do deficiente. Não basta anunciar o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para as crianças com microcefalia, como fez o ministro. Precisamos de políticas amplas de inclusão para elas e suas cuidadoras. Quem cuida de criança com deficiência no Brasil é a mãe; no caso das vítimas da epidemia, são as mães pobres e nordestinas. É assim que a epidemia do zika tem como vítima uma população negligenciada das políticas de saúde brasileira: as mulheres.

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