Dinossauros na UTI

Impasse na Filarmônica de Berlim levanta a questão: para que servem as orquestras hoje? Elas precisam sair da redoma e respirar a realidade social e cultural que as rodeia

PUBLICIDADE

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Adolf Hitler conhecia bem o poder simbólico da Filarmônica de Berlim, instituição cooperada, gerida pelos músicos. Durante o Terceiro Reich, ela foi instrumento preferencial de propaganda do regime. Sob o reinado de Herbert von Karajan, o “kaiser” que rasgou sua carteirinha da SS para assumir o cargo em 1954 por 25 anos, os salários eram mero pretexto: os músicos ganhavam muito mais pelas gravações. Até hoje são campeões de vendas da era dos discos. Karajan gravou cinco vezes as nove sinfonias de Beethoven - uma máquina de fazer dinheiro. Um passado dourado que não volta mais.

A Filarmônica voltou a ser notícia no último dia 11, quando terminou em impasse a reunião secreta em Berlim de seus 123 músicos para eleger o sucessor do atual maestro titular, Simon Rattle, a partir de 2018. O racha entre dois candidatos adiou por um ano a escolha. De um lado, Christian Thielemann, alemão, 56 anos. Parece um clone de Karajan na postura política antissemita, mas sem o talento do guru. Do outro, o letão Andris Nelsons, objeto de desejo dos músicos mais jovens, não parece ter o menor interesse no cargo (algo impensável décadas atrás, quando Berlim era o Olimpo da batuta). Aos 36 anos, recém-assumiu como titular da Orquestra de Boston e já declarou não querer largar o osso. 

Do Vaticano ao Irajá: Dudamel e Barenboim recusaram o Olimpo da batuta Foto: DIVULGAÇÃO

PUBLICIDADE

É triste. A Filarmônica de Berlim ainda age como se fosse, mas não é mais o centro da música clássica no planeta. Eles bem que tentaram fazer charminho, “vendendo” à mídia que esta eleição seria como a dos papas no Vaticano. Quem diria, acabaram no Irajá. As recusas se multiplicam. De jovens como Gustavo Dudamel, 34 anos, titular da Filarmônica de Los Angeles e o canadense Yannick Nezet-Seguin, 40 anos, titular da Orquestra da Filadélfia. E de veteranos como Daniel Barenboim e Mariss Jansons.

Se até os batuteiros viram as costas para Berlim, isso quer dizer que este modelo de orquestra já era. A pergunta fundamental agora é: o que fazer com as orquestras sinfônicas no século 21? Elas são de manutenção caríssima. A Osesp e o Theatro Municipal de São Paulo têm orçamentos anuais raspando os R$ 100 milhões, tudo dinheiro público direto ou indireto (incentivo); a primeira teve de cortar R$ 10 milhões semana passada. Historicamente, as orquestras remontam a uma época de privilégios, mecenato e riquezas desigualmente distribuídas, diz Robin Maconie no livro A Música como Conceito. Difícil discordar dele ao diagnosticá-la como dinossauro cultural entubado numa UTI. Sem previsão de alta.

Relatos dão conta de que a Conferência MultiOrquestra, realizada entre 28 e 30 de abril passado no Rio de Janeiro, iniciativa do British Council, mostrou caminhos para tirar a orquestra da redoma em que está metida e devolvê-la às realidades sociais e culturais nas quais deveria estar inserida. Quarenta profissionais daqui e do exterior participaram dos painéis e exposições sobre o tema “A Orquestra e a Cidade”.

O modelo da Filarmônica de Berlim está morto, foi paradigma das orquestras da primeira metade do século 20: um museu monumental destinado à preservação da música do passado, que Rattle, o atual titular, tentou trazer para o século 21 e enfrentou forte resistência. Se até por lá a discussão perde sentido, a coisa fica ainda mais absurda em países como o Brasil. Não dá para continuar formando músicos para tocar o repertório do passado; e ter como meta pegar uma beiradinha na soleira da Casa Grande da vida musical europeia. 

Queiramos ou não, estamos na senzala das Américas. Tá certo, na última década demos um banho de loja, alcançamos uma qualidade boa de execução, temos hoje orquestras mais consistentes. Mas erramos ao insistir em competir com os modelos europeus, batê-los no campo deles, e com as regras deles. 

Publicidade

É fundamental que as orquestras olhem para nossa realidade. Saiam da sala de concertos, deixem de ser templos para onde são levados milhares de estudantes para se deslumbrar com o luxo e o requinte de uma sinfônica - e depois engrossar estatísticas de relatórios anuais. Elas é que devem ir aonde o povo está. Não dá mais para agir como se o Olimpo da música clássica tivesse o direito de existir independente da realidade que a rodeia. É como se não existissem os viciados em crack que circundam a Sala São Paulo, por exemplo. Nas fotos, retoques os eliminam da paisagem. A realidade os repõe no caminho dos reluzentes automóveis a caminho do Walhalla da música clássica. Quem tem poltrona assegurada não arrisca pôr os pés no chão.

Entrementes, economias são feitas aos tostões, e nos lugares errados. Há semanas foi extinta a Camerata Aberta, de São Paulo, único grupo permanente dedicado à música contemporânea no País. Duas dezenas de músicos foram demitidos, não do cargo de integrantes da Camerata, mas como professores da Escola Municipal de Música. Duzentas vagas de alunos que já passaram nos exames foram cortadas. Esta é a realidade da música no Brasil. Enquanto isso, as estruturas caríssimas das orquestras olham para seus umbigos e dão de ombros para a realidade: deveriam é se reinventar com urgência. Tentar sair de seus paraísos artificiais. 

JOÃO MARCOS COELHO É JORNALISTA E CRÍTICO MUSICAL

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.