Dor sem remédio

Família Hsueh - Parentes de Edison, morto há dez anos em trote na Medicina-USP, perderam a esperança na Justiça

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Por Ivan Marsiglia
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Depois que o filho saiu de casa e nunca mais voltou, o imigrante taiwanês Feng Ming Hsueh passou a cultivar no quintal da família, na Vila Cruzeiro, zona sul de São Paulo, um pé de olho-do-dragão. A Adenanthera pavonina é uma espécie nativa da Ásia tropical que produz um fruto semelhante à lichia, cuja polpa lembra um globo ocular. Todos os dias, em silêncio, ele a observava crescer. Quando a árvore rompeu o vaso de barro que a continha, Feng levou-a para a praça em frente à casa e a transplantou. Ano após ano, ela deitou raízes, desenvolveu-se, deu e perdeu frutos, sempre diante do olhar vazio de seu dono. Feng disse certa vez que via no trabalho lento do tempo sobre a planta a concretização de sua espera por justiça. E que o dia em que soubesse que esta não mais viria, ele estaria pronto para morrer. Em agosto, Feng morreu do coração. Pai de Edison Tsung Chi Hsueh, calouro da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) encontrado morto na manhã do dia 23 de fevereiro de 1999, após o trote de "boas-vindas" promovido pelos veteranos na tarde anterior, ele cansou de aguardar a resposta das autoridades do país que há mais de três décadas adotara como seu. "Meu pai não aguentou de tanto desgosto", conta Emílio, de 35 anos, irmão mais velho de Edison, que cursou física, depois engenharia e presta serviços de manutenção em maquinário gráfico. "São recursos e mais recursos na Justiça, de vez em quando uma emissora de TV vem aqui, mas esquece: nada muda." O caçula Edison tinha 22 anos e havia cursado dois semestres de medicina na Santa Casa, mas desistiu preocupado com as altas mensalidades pagas pelos pais. Voltou a estudar, passou na Fuvest e enfim conquistou a faculdade pública. O sonho, porém, não passaria da ficha de matrícula. O calouro foi retirado sem vida do fundo da piscina semiolímpica do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, o Caoc, só de bermuda e com a inscrição "Santa Casa" em tinta colorida nas costas - numa referência pejorativa aos olhos da elite dos estudantes de medicina do País. Seus grossos óculos de grau repousavam embaixo d?água. O corpo apresentava ferimentos leves. E não havia vestígio de álcool ou drogas no organismo. Edison não sabia nadar e tinha ido à praia uma única vez com a mãe, aos 7 anos. "A única conclusão possível é que ele foi empurrado ou levou o chamado ?caldo? dos veteranos", diz a promotora Eliana Passarelli, designada à época pelo Ministério Público para acompanhar o caso, com a colega Maria Amélia Nardy Pereira. Inicialmente, o diretor da faculdade, Irineu Tadeu Velasco, fez circular a versão de que duas pessoas que treinavam no clube entraram na piscina às 18 horas, após o fim da festa, e nada encontraram, o que o levou a concluir que "o estudante deva ter caído depois desse horário". A especulação apressada caiu por terra com a divulgação do laudo do Instituto Médico Legal (IML), que apontou morte por afogamento entre o meio-dia e 16 horas - ou seja, no auge da festa, quando quase 200 pessoas, entre calouros e veteranos, estavam no local. Estranhamente, ninguém viu nada. Logo após a tragédia, um professor pediu aos alunos que escrevessem sobre o que presenciaram, sob condição de anonimato. Requisitados pela promotora, os relatos ajudaram a formar a imagem que Eliana tem do que ocorreu aquele dia: um crime, convicção compartilhada pelo delegado responsável pelo caso, Marcelo Damas, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). "Os textos falam de Edison como um menino tímido, de óculos pesados, fazendo tudo o que os veteranos mandavam", diz ela. Quatro calouros - três moças e um rapaz - ouvidos pelo delegado em abril daquele ano, descreveram que o trote foi regado a álcool, maconha e lança-perfume. E veteranos atiravam calouros na piscina, pisando nas mãos dos que tentavam agarrar-se à borda para sair. Uma das jovens contou ter ficado amarrada com barbante no mesmo grupo de Edison, mas afirmou não tê-lo visto mais. Um vigilante do Caoc que afirmou ter recebido um telefonema misterioso na madrugada do dia 23, antes da descoberta do corpo, perguntando se "tudo estava bem", mudou seu depoimento à Justiça. Para Eliana, um pacto de silêncio foi estabelecido por pressão dos colegas e da própria instituição, preocupada com sua imagem pública. As investigações da polícia concentraram-se nos veteranos descritos pelos alunos como mais agressivos. Até que um fato grotesco envolvendo um deles se somou ao já espantoso caso. Em julho daquele ano, veio a público um vídeo em que Frederico Carlos Jana Neto, o Ceará, sextanista do curso de medicina, afirmava, sorridente, em uma choperia: "Eu matei o japonês (sic). Eu matei o japonês que se afogou". O que jurou depois ter sido apenas uma brincadeira "de extremo mau gosto" custou a Ceará quatro dias de prisão temporária e uma tomada de posição explícita por parte da Faculdade de Medicina. Docentes e alunos organizaram atos contra o que consideraram um açodamento do Ministério Público. Nos dois primeiros dias de prisão, o acusado recebeu a visita solidária de oito professores da USP. Já a família Hsueh não mereceu igual tratamento por parte dos doutores. "Em dez anos, ninguém nunca veio nos visitar", conta, em seu português claudicante, dona Yen, de 64 anos, mãe de Edison, nascida em Taiwan como o marido. Após a morte de Feng ela teve que voltar a trabalhar em uma loja para completar o ordenado que Emílio traz para casa. A falta de tato da faculdade talvez não se fizesse sentir dessa forma se a Justiça brasileira não tivesse negado aos Hsuehs todas as respostas a que tinham direito. Em fevereiro de 2001, o 5º Tribunal do Júri aceitou a denúncia das promotoras e instaurou processo sob a acusação de homicídio qualificado contra os já médicos formados Frederico Carlos Jana Neto e Guilherme Novita Garcia, e os ainda estudantes Luís Eduardo Passarelli Tirico e Ari Azevedo Marques Neto. Os acusados constituíram advogados de primeiro time, entre os quais o criminalista José Roberto Batochio e o futuro ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Jamais foram levados a júri popular. Em dezembro de 2002, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) acatou um pedido de habeas-corpus de Batochio, que sustou a ação penal por "falta de justa causa". "Suspenderam um processo penal com uma liminar", espanta-se Eliana Passarelli, que hoje atua na Corregedoria da Polícia Militar em São Paulo. "Foi um ato totalmente inusitado que, depois de 25 anos como professora de direito, tive que tentar entender. E uma decisão que garantiu a impunidade no País e deixou abertas as portas para a violência no trote", acusa. "A denúncia era absolutamente temerária", rebateu Márcio Thomaz Bastos sexta-feira, ao Aliás: "Quando li os autos, fiquei estarrecido. Tratava-se de um caso clamoroso de excesso de acusação", sustenta o ex-ministro. Não é esse o entendimento do Ministério Público Federal, que interpôs em setembro recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o trancamento da ação. O pedido repousa na mesa do ministro Marco Aurélio Mello, que não deu nenhum andamento desde então. Antes disso, em fevereiro, a família de Edison amargara outra derrota, na ação por danos morais que move contra a USP. A universidade negou indenização aos Hsuehs alegando não ser responsável pela piscina onde Edison morreu - pois esta estava "cedida em comodato ao centro acadêmico". A família foi ao STF, e o recurso está nas mãos do ministro Eros Grau. D. Yen, que pretendia dividir o que recebesse em três partes - "uma para a Santa Casa, uma para o templo budista e a outra para o estudo do Emílio" - terá que continuar dando expediente na loja. Embora o STF possa mudar o desfecho dessa história, ela não quer aferrar-se à espera que custou a vida do marido. "Eu dizia para ele se tratar, que aquilo era depressão, mas ele se deixou levar", emociona-se. "Não gosto de falar nisso, porque sinto raiva - e raiva não é bom sentimento." Se pudesse se dirigir a alguém, doutor ou doutora, que esteja lendo esta reportagem agora em seu consultório, com avental branco, estetoscópio no pescoço e um segredo que não veio à tona - como o corpo de Edison naquela manhã de 1999 -, Yen garante: nada diria. Budista que é, ela acredita que a vida tem seu curso e destino, nos quais não é preciso intervir. Sobre tudo e todos, paira o olho-do-dragão. "Essa turma não vai ficar tão bem. Quem tem coração pode até pensar que esqueceu, mas toda vez vai ver a imagem do meu filho na memória. E ficar triste por dentro também." TERÇA, 10 DE FEVEREIRO Recepção violenta Bruno Ferreira, calouro de veterinária do Centro Universitário Anhanguera, em Leme (SP), foi agredido e jogado em uma lona com excrementos. Ele desistiu do curso. Em Santa Fé do Sul (SP), outra estudante, grávida, foi queimada com produtos químicos. PROMOTORIA "Suspenderam o processo penal com uma liminar!", espanta-se Eliana Passarelli, do MP DEFESA "Tratava-se de um caso clamoroso de excesso de acusação", rebate Thomaz Bastos TRISTEZA MATERNA "Essa turma não vai ficar tão bem. Vai sempre ter a imagem do meu filho na memória"

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