E la nave va

Caso as projeções demográficas da ONU se confirmem, o fluxo de imigrantes desempenhará papel cada vez mais relevante na geopolítica do planeta

PUBLICIDADE

Por Luiz Felipe de Alencastro
Atualização:
  Foto:  

O ano que passou foi marcado por acontecimentos que aceleraram o presente e trouxeram de novo o passado. Durante a Conferência do Clima organizada em Paris nesse mês, a situação dos oceanos foi pela primeira vez debatida num evento internacional desse escopo. Além de cobrir 71% da superfície do planeta, absorvendo 25% do gás carbônico e quase todo o excesso de calor causado pelas atividades humanas, os oceanos têm, desde os descobrimentos, um peso geopolítico essencial. Cerca de 250 cabos submarinos conectam os cinco continentes, transportando 99% da rede mundial de comunicação (telefone, rádio) e de internet. Da mesma forma, 95% do comércio mundial utiliza o transporte marítimo.

PUBLICIDADE

Globalmente, os oceanos proporcionam serviços equivalentes a US$ 2,5 trilhões anuais. Tais montantes aumentarão nos próximos anos em razão dos melhoramentos introduzidos nas rotas marítimas. Assim, no último mês de agosto, foram inauguradas modernizações que ampliam o fluxo de navios transitando pelo Canal de Suez. Ao mesmo tempo, aceleram-se as obras que irão triplicar a capacidade do transporte de contêineres no Canal da Panamá. Aberto em 1914, o Canal do Panamá colocou o Rio de Janeiro um pouco no escanteio, tirando do porto carioca a preeminência que ele adquirira com o acréscimo da navegação para o Pacífico, pelo Cabo Horn.

Mais ao Norte, na Nicarágua, um consórcio de Hong Kong começou a construir em 2015 outro canal ligando o Caribe ao Pacífico. Embora o consórcio honconguês afirme sua autonomia, muitos analistas veem a mão do governo de Pequim nessa empreitada. Bem mais ao Norte, no Ártico, o degelo causado pelo aquecimento global abre novas rotas estratégicas, reduzindo em um quarto a viagem entre os portos chineses e norte-europeus. Problemas relativos à delimitação de fronteiras, ao controle das vias marítimas e à exploração de petróleo, gás e minerais estão sendo discutidos pelo Conselho do Ártico, foro intergovernamental que reúne os países da região.

País que possui a maior costa marítima de todo o Oceano Atlântico, o Brasil não contempla em suas universidades o ensino organizado de história marítima ou de direito marítimo. Frente à revolução dos contêineres, que transformou o transporte e o comércio mundial nas últimas décadas, os portos brasileiros continuam subequipados. Santos, o maior porto do País, ocupa o 38° lugar na lista dos 50 maiores portos de contêineres do mundo. 

*** Outro fato marcante de 2015 foi o aumento dramático do fluxo de refugiados na Europa. Do dia 1° de janeiro ao dia 21 de dezembro de 2015, 1 milhão de migrantes e refugiados atravessaram as fronteiras europeias. 

Além dos migrantes, saídos de seus países por razões econômicas, a massa de deslocados por perseguições étnicas ou religiosas é composta essencialmente por sírios e, numa menor medida, afegãos e iraquianos. Comparado aos 280 mil indivíduos que entraram em 2015, o número registrado neste ano configura o maior afluxo de pessoas deslocadas na Europa desde a Segunda Guerra. Note-se que, em 2014, 20 milhões de pessoas foram vítimas de deslocamentos forçados pelo mundo afora, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, sediado em Genebra. A Turquia é o país que mais recebeu refugiados em números absolutos (2 milhões), o Líbano em número relativos (209 refugiados para cada mil habitantes). A Etiópia aparece como país onde o número de refugiados mais pesa sobre a renda nacional (469 refugiados por dólar de PIB por habitante). Conforme estudos do Banco Mundial, a grande maioria dos refugiados é acolhida pelos países pobres (como a Etiópia) ou emergentes (como a Turquia). Numa declaração ao jornal parisiense Libération, que publica os dados citados acima, o dinamarquês Michael Møller, diretor da ONU em Genebra, insiste na dimensão mundial e não apenas europeia do problema dos refugiados.

Nos Estados Unidos, o tema dos refugiados é menos premente. Mas a presença de 11 milhões de imigrantes clandestinos, entre os quais dezenas de milhares de brasileiros, tem sido bastante discutida na pré-campanha presidencial. Mesmo os pré-candidatos republicanos à presidência estão divididos sobre o assunto. Donald Trump e o senador Ted Cruz exprimem o ponto de vista mais radical, propondo a deportação pura e simples de todos os clandestinos, enquanto os outros pré-candidatos julgam a medida impraticável. 

Publicidade

Ao contrário do que acontece na Europa, onde predomina o direito de sangue, no qual a nacionalidade é outorgada pela filiação do indivíduo, ou seja, em conformidade com a nacionalidade de seus pais, o direito de solo facilita a integração dos imigrantes nos Estados Unidos. Típico dos países americanos, o direito de solo garante automaticamente a nacionalidade aos filhos de estrangeiros nascidos no território do país. A norma foi instaurada no Brasil pelo artigo 6° da Constituição de 1824. Mas só passou a vigorar nos Estados Unidos depois da Guerra da Secessão, com a edição da 14ª Emenda à Constituição, votada pelo Congresso em 1868.

Entre outros líderes conservadores, Trump é o mais notório crítico dessa legislação. Considerando o direito de solo um ímã de atração para a imigração clandestina, Trump é favorável à revogação da 14ª Emenda Constitucional. Uma pesquisa do instituto Pew mostrou que 8% dos bebês nascidos no solo americano em 2013 tinham ao menos um de seus pais vivendo ilegalmente nos Estados Unidos. Para resolver a situação dessas famílias, o presidente Barack Obama editou em novembro do ano passado decretos presidenciais legalizando a residência de imigrantes clandestinos que sejam pais de crianças americanas ou de crianças com estada legal nos Estados Unidos. Contudo, 26 Estados questionaram a constitucionalidade de tais medidas, gerando um impasse jurídico que só será resolvido pela Suprema Corte, provavelmente depois do final do mandato de Obama, em 2017. 

Apesar desses embaraços, o direito de solo e a permeabilidade da sociedade americana à assimilação das vagas sucessivas de imigrantes assegurarão um lugar de destaque aos Estados Unidos ao longo do século 21. De fato, publicado em 2010 e revisto em 2015, o estudo da ONU sobre as projeções demográficas mundiais sublinha as profundas mudanças que alterarão a hierarquia das nações. Entre 2015 e 2050, os maiores recebedores de imigrantes serão, nesta ordem, os Estados Unidos, o Canadá, o Reino Unido, a Austrália, a Alemanha, a Rússia e a Itália. Nessa última data, a Índia já será o país mais populoso do planeta, seguido pela China, Nigéria, Estados Unidos e a Indonésia. As projeções para 2050 mostram também que nenhuma das nações europeias ou asiáticas (Japão) predominantes na economia mundial nas últimas décadas estará entre os 15 países mais povoados, com exceção dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Em 2100, a Rússia também cairá fora dessa lista, na qual constarão sete países africanos (Nigéria, República Democrática do Congo, Tanzânia, Etiópia, Níger, Uganda e Egito), seis asiáticos (Índia, China, Paquistão, Indonésia, Filipinas e Bangladesh) e dois americanos (Estados Unidos e Brasil). Tanto os Estados Unidos como o Brasil são, e serão mais ainda, sociedades multiculturais com uma importante população de descendência africana e asiática. 

Ao fim e ao cabo, os Estados Unidos serão a única potência ocidental do século 20 que se manterá entre os cinco maiores países do mundo, passando de 322 milhões de habitantes em 2015 para 450 milhões de habitantes. Graças, em boa medida, ao crescimento demográfico reforçado pelo afluxo contínuo de imigrantes. 

PUBLICIDADE

Caso as projeções dos especialistas da ONU se confirmem, o Brasil conhecerá uma evolução demográfica paradoxal. Após atingir um pico de 238 milhões de habitantes em 2050, a população do país declinará para atingir em 2100 uma cifra parecida com a do ano 2000: 200 milhões de habitantes. Os exemplos internacionais demonstram que uma queda populacional dessa natureza só pode ser freada de duas maneiras. Com uma política imigratória ativa, eliminando-se a burocracia que desencoraja a vinda e a instalação de imigrantes, e com uma política natalista mais ampla, de apoio aos jovens casais e às famílias numerosas. De todo modo, é bom lembrar que, em matéria de evolução demográfica, o futuro começa no ano que vem. 

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO PROFESSOR DA ESCOLA DE ECONOMIA DE SÃO PAULO/FGV E PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE PARIS-SORBONNE