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Ele dizia não

A única coisa imutável no Abu era a insistência em não aceitar as coisas como elas são

Por Ugo Giorgetti
Atualização:

Logo cedo compreendeu que o palco tem um centro e que no centro do palco ficam os protagonistas. Sua vida pode se resumir numa luta incessante para primeiro ocupar e depois nunca deixar o centro do palco, onde quer que estivesse. Podia ser teatro, coisa que amava, mas ao menor sinal de que o palco dos acontecimentos tinha se deslocado para a TV, se transferia para ela sem hesitação. Quando a TV não lhe oferecia o protagonismo que exigia, fazia shows sozinho, declamava poesia, emprestava sua voz para a publicidade, realizava entrevistas, fazia cinema.

Abujamra: um dos últimos remanescentes de um mundo perdido Foto: ESTADÃO CONTEÚDO

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Nos conhecemos aí por volta de 1972 ou 73, fazendo um comercial para a antiga Telesp. Eu como diretor, ele como ator, fazendo um motorista de taxi. Ficou encantado por eu o ter escolhido para fazer o papel de um motorista, tão distante da sua formação cultural francesa de que se orgulhava. Fazia parte de seu modo de ser surpreender e ser surpreendido. Como eu o tinha surpreendido ficamos amigos. 

Especialista do paradoxo, Antonio Abujamra parecia - e se declarava - sempre cansado, imóvel, cético. E no entanto era ativo, estava em toda a parte, movimentava-se de um veículo de comunicação para outro, inventava projetos e trabalhou até a véspera de sua morte, na terça-feira. Fomos sócios no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) de 1980 até 1983 mais ou menos. Ele, eu, Glauco Mirko Laurelli e Georges Walford. Fracassamos, é claro, coisa que nunca o desgostava. Acariciava e acalentava seus fracassos com tanto charme que acabavam se transformando em sucessos, principalmente aos olhos dos mais jovens, sempre prontos para reverenciar a rebeldia e a vocação de dizer NÃO. 

A única coisa imutável nele era a exatamente essa insistência em não aceitar as coisas como elas são. Curiosamente, esse ser inquieto, criativo e insatisfeito era um homem do passado, de outros tempos. Os jovens, e todos que o respeitavam, o viam em geral como homem atualíssimo, atuante, critico, mas ele era, sobretudo, um dos últimos remanescentes de um mundo perdido. O da Europa dos anos 60, que ele tinha frequentado, da França de Sartre, Camus, Jean Genet, Michel Foucault e Paul Veyne. Da França de Maio de 1968. E certamente do Modernismo de São Paulo, do qual também era um dos últimos herdeiros. Não fazia apologia desse tempo, pouco falava do passado, aparentava não dar importância a isso. Mas mantinha da época o que era essencial, atemporal, o que explicitamente, ou em segredo, qualquer geração reivindica: a vontade de derrubar o estabelecido e instaurar o novo. Esse espírito fazia com que esse homem do passado se mantivesse exatamente no centro do palco, de onde se recusava a sair. 

Não temia a contradição, que era uma de suas marcas. Colocava-se intransigentemente ao lado dos poetas malditos, mas não podia, nem tentava, ser um deles. Defensor radical dos marginais e deserdados, não era um deles. Cultor do fracasso, muitas vezes vencia. Socialista, não hesitava em lutar neste mundo capitalista. Não havia nada de falso nessas contradições. Era apenas um homem à procura de si mesmo. 

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Em algum momento deu-se conta de que representar é melhor do que dirigir. Que tinha criado para si mesmo, na vida real, um grande personagem e era preciso utilizá-lo. Virou o ator que sempre tinha sido. O problema é que esse ator estava sempre acima do personagem que devia representar. O único personagem de Abu, e eu o dirigi em três filmes, era ele mesmo. Ou o roteirista escrevia levando isso em conta, ou flertava com o desastre. Ele não representava, ele era. E quando podia ser ele mesmo era magnífico. 

Ultimamente tinha dado para se transformar no mestre venerável ou no patriarca sorridente. Não era sua melhor atuação. Eu gostava mais quando encarnava o desiludido, o que sabia “que a vida era uma causa perdida”. Por mais de 30 anos lidei com esse personagem e ainda não sei nada dele. Sei que, por razões vagamente obscuras, gostava muito dele, e ele, talvez pelas mesmas razões, gostasse um pouco de mim. Abujamra, que amava tanto a poesia, que nos deixou Fernando Pessoa tão bem declamado com sua voz especial e sua dicção de mármore, pode ser, no entanto, que encontre sua definição mais precisa nos versos de Mario de Andrade, esse outro grande artista despedaçado: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta/Mas um dia afinal eu toparei comigo...” 

UGO GIORGETTI É CINEASTA E COLUNISTA DO ESTADO

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