Em defesa da utopia perdida: novo livro de Michael Löwy e Robert Sayre destrincha o romantismo

Em novo livro, Michael Löwy e Robert Sayre destrincham o romantismo – termo tratado com preconceito, mas que também representa o olhar crítico a uma realidade opressora

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Por Juliana Sayuri
Atualização:

Palavras são engenhosas. Muitas ficaram impregnadas de fetiches que Houaiss nenhum poderia traduzir. “Romantismo” é uma delas. Tragada e digerida com certo amargor, a expressão é alvo de interpretações pejorativas, principalmente atribuídas a idealistas ingênuos, nostálgicos inveterados, utopistas desenraizados do presente e que só pensam no passado. Exemplo: lutar por um mundo melhor, mais justo e mais livre, que conversa mais antiga, defasada, “romântica”, um delírio derrotista, o muro de Berlim já caiu, o capital venceu, é o fim da história, página virada, quem não gostou que vá pra Cuba ou pra Venezuela. Mais de mil ocupações, os últimos românticos.

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Felizmente, a história não acabou. Além do mais, romantismo não quer dizer só isso. Muitos poderiam se surpreender com a interpretação de romantismo além de corrente das artes europeias do século 19, mas como ideia marcante no 20 e, sim, ainda vibrante no 21. Romantismo também é uma resposta às condições de vida da sociedade contemporânea, uma revolta contra a modernidade capitalista. Uma visão singular de mundo.

Não é difícil identificar essa visão. Pode ser o olho lacrimejante de uma estudante secundarista. De Curitiba a São Paulo, para ficarmos nas cercanias da história do tempo presente, é flagrante nos olhos de muitos manifestantes essa convicção dolorosa de que o mundo perdeu valores humanos essenciais, atropelado por uma lógica de mercado. Liberdade? Só para poder iniciar o próprio negócio e terceirizar tudo. Fraternidade, cá entre nós, entre os nossos, pois todos os homens são iguais, mas uns são mais iguais que os outros – é questão de meritocracia. Ironia feita, esse olhar crítico à realidade, uma realidade triste, dolorida, depressiva, é um tipo de romantismo, como diria o poeta francês Gérard de Nerval (1808-1855), ao mesmo tempo “iluminado pela estrela da revolta e pelo sol negro da melancolia”.

Revolta e Melancolia é o título do livro do sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy e do crítico literário americano Robert Sayre, esgotado desde meados da década de 1990 e que voltou às livrarias brasileiras sob o selo da Boitempo Editorial. Nessas páginas, os autores destrincham o tal romantismo, segmentado em diferentes vertentes. O romantismo revolucionário é uma das mais interessantes, almejando um futuro radicalmente novo, que reencontraria os valores perdidos com a modernidade.

Segundo Löwy e Sayre, dimensões românticas revolucionárias estariam presentes no maio de 1968 e outras irrupções da época, como movimentos terceiro-mundistas, mobilizações pacifistas, teologia da libertação, ideias feministas, correntes ecológicas, agitações contraculturais, entre outros fluxos. E, num efeito matrioska, dentro do romantismo revolucionário os autores assinalam outros tipos específicos – entre eles, talvez mereça destaque o romantismo marxista, focado na luta de classes e no papel revolucionário do proletariado (linha ilustrada, na tese dos autores, por nomes como Walter Benjamin, Raymond Williams, Hebert Marcuse, Henri Lefebvre, E. P. Thompson, E. Bloch, além dos próprios Marx e Engels). Curiosidade bibliográfica: muitas dessas ideias também marcam outro livro assinado pelos autores, Romantismo e Política (Paz e Terra, 1993).

Num de nossos últimos encontros, num outono parisiense, Michael Löwy e eu conversamos sobre o romantismo revolucionário. Löwy, um marxista insubordinado e autor de Para uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários (Lech, 1979), entre outros, dizia que era preciso considerar duas chaves para compreender o romantismo revolucionário. Uma, a nostalgia de um passado pré-capitalista. Outra, a esperança de um futuro pré-capitalista, como o esperado por alguns movimentos campesinos e indígenas.

Sejamos nostálgicos por um minuto: no fim da década de 1950, circunstâncias históricas permitiram o florescimento de diversas versões do romantismo revolucionário, espalhadas por Argélia, Cuba, Vietnã. No Brasil, o sociólogo Marcelo Ridenti versou o romantismo revolucionário para compreender as lutas políticas e culturais de fins da década de 1960 e início de 1970, da luta armada às manifestações político-culturais no cinema, na literatura e na música.

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Não sejamos nostálgicos: atualmente, tanto revolta quanto melancolia continuam presentes, irrompem cá e lá em diferentes contextos. A revolta, por exemplo, na indignação instintiva que pulsa a cada professor-alvo de bala de borracha. A melancolia, no vazio existencial de milhares de mentes angustiadas, mas que, na ausência de uma faísca revolucionária, acabam anestesiadas por um Rivotril ou um like no Facebook.

Revoltada, mas melancólica, a visão romântica convida a pensar o mundo que a gente vive – e o que gostaria de viver. O mundo que se quer transformar, o ideal que se quer reencontrar, a história que se quer escrever. Um último romance. Uma utopia. E, como escrevem os autores, “a utopia ou será romântica ou não será”.

JULIANA SAYURI, JORNALISTA, DOUTORA EM HISTÓRIA SOCIAL PELA FFLCH-USP E AUTORA DE DIPLÔ: PARIS – PORTO ALEGRE (EDITORA COM-ARTE, 2016)

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