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Luzes da cidade

Entre a Besta e o coiote

Nos 50 anos dos direitos civis nos EUA, crianças estrangeiras nada têm a comemorar

Por Lúcia Guimarães
Atualização:
REFILE - CORRECTING DAY IN SECOND SENTENCE ALIAS Guatemalan families, deported from Phoenix, Arizona in the U.S., walk at an air force base after arriving on a flight transporting illegal Guatemalan migrants, in Guatemala City, July 22, 2014. According to immigration authorities, the illegal migrants which include 13 children, were the members of seven families deported on Tuesday from the U.S. to Guatemala. Foto: JORGE DAN LOPEZ/REUTERS

Este mês foi marcado, nos Estados Unidos, por comemorações do cinquentenário do Ato dos Direitos Civis, assinado no dia 2 de julho de 1964 pelo presidente Lyndon B. Johnson. O Ato, além de banir a segregação racial nas escolas, no trabalho e em locais públicos, atribuiu ao governo a tarefa de garantir o direito constitucional ao voto que era constantemente negado aos negros americanos. É uma das peças de legislação que melhor definiu a democracia americana no século 20.

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Há quem olhe para o drama que se desenrola na fronteira americana com crianças e adolescentes imigrantes vindos em sua maioria de três países, Honduras, Guatemala e El Salvador, e para a explosão de rancor anti-imigrante e pergunte: este é o país que cruzou aquela fronteira moral há 50 anos?

O menino que dorme no chão de um abrigo provisório no Texas nem desconfia do número de palavras que os adultos usam para definir sua pessoa. Ilegal, invasor, refugiado ou sinal de crise humanitária. O último epíteto foi escolhido pelo presidente Barack Obama para qualificar a chegada dos 57 mil menores centro-americanos desde outubro. As palavras, como sabemos, além de ter peso simbólico têm seu preço eleitoral e ramificações jurídicas. Por isso, o termo “refugiado” tem sido cuidadosamente expurgado dos pronunciamentos.

Mas o menino é, por definição, um refugiado, dizem organizações de direitos humanos. Se o menino foge da violência de gangues e do crime organizado, de traficantes cujos clientes são os consumidores americanos, por que ele não merece o mesmo tratamento de uma criança que foge de um conflito distante? Em 2012, 13.625 menores sem documentos chegaram aos EUA. A previsão para este ano é de mais de 70 mil.

Na sexta-feira, Obama se reuniu com os presidentes de El Salvador, Guatemala e Honduras para discutir a crise. O recado foi: temos compaixão, mas as crianças sem documentos que não apresentarem uma reivindicação legítima de asilo serão mandadas de volta. Obama pediu aos três chefes de Estado para cooperar e estancar o fluxo de crianças desacompanhadas para os EUA. E, preocupado com as inevitáveis acusações da comunidade latina que voltou nele em peso em 2008 e 2012, disse: “Expliquei a meus colegas presidentes que admitimos um número de refugiados sob um critério restrito. Status de refugiado não é conferido apenas por necessidade econômica ou porque a família vive numa vizinhança ruim ou na pobreza”. Obama acenou com a possibilidade de asilo para famílias sob critérios humanitários, mas deixou claro que o número de refugiados seria limitado e é melhor as famílias fazerem o pedido em seus países de origem.

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Os países centro-americanos do chamado “Triângulo Norte” preferem um gordo cheque para, como disse o presidente Otto Pérez Molina, da Guatemala, “atacar a raiz do problema”. Se os EUA gastam mais de US$ 20 bilhões na segurança da fronteira, ele argumenta, por que não investir uma quantia bem mais modesta nos países exportadores de imigrantes ilegais? A sugestão foi recebida com sarcasmo antes mesmo de Molina pisar na Casa Branca. A Câmara, controlada pelos republicanos, se recusa a abrir a torneira da ajuda externa. 

O fato é que as crianças continuam a fugir, muitas entregues por suas famílias a coiotes - os contrabandistas de ilegais que cobram quantias como US$ 5 mil ou US$ 10 mil para transportá-las, sem o menor compromisso de plantá-las em segurança do outro lado da fronteira. Não se conhece o número de mortos na jornada, que inclui uma viagem aterradora de até 2.400 quilômetros no “La Bestia”, trem de carga que parte de Arriaga, no Estado mexicano de Chiapas, e faz paradas em cidades próximas à fronteira. Aventura que inclui morte por queda dos vagões em movimento, assalto por bandidos armados e sequestro por gangues de narcotraficantes para usar as crianças como mulas para levar drogas.

O paralelo entre o país pré-Ato de Direitos Civis de 1964 e aquele cujo primeiro presidente negro quer verba para deportar as crianças com maior rapidez foi feito com eloquência pelo professor William Jelani Cobb, diretor do African Studies Institute da Universidade de Connecticut. Em artigo na revista New Yorker, Cobb argumenta que a luta pelo Ato não era apenas por igualdade, mas pela cidadania plena de uma parcela da população tratada como americanos de segunda classe. E aponta para o fato de que mais de 16% da força de trabalho ativa nos EUA é composta de estrangeiros e esse número incluiu parte dos 11 milhões de imigrantes sem documentos.

Nos Hamptons, paraíso de verão dos ricos nova-iorquinos onde o aluguel de uma casa por três meses pode custar US$ 150 mil, a limpeza das piscinas, o corte da grama e o cultivo dos jardins é trabalho comum para centro-americanos sem documentos. Conheço um guatemalteco que não vê a família há oito anos e trabalha dez horas por dia de segunda a sábado, embelezando jardins de escritores, empresários e profissionais que se consideram politicamente progressistas. Ele mal sabe escrever o nome, e quando descobriu um furto numa casa não chamou a polícia, com medo de ser deportado. Sua filha de 15 anos não vai tentar cruzar a fronteira, mas já enfrentou assaltos e ele vive de olho no celular. O professor Jelani Cobb tem razão. Esse jardineiro não tem direitos civis para comemorar. 

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