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Entre o contágio e a pedrada

Trabalhando em condições precárias, médicos são dos mais expostos à contaminação - quando não viram alvo do desespero dos infectados

Por Monica Manir
Atualização:
ELX05. Foya (Liberia), 23/06/2014.- A handout photo provided by Samaritan's Purse on 01 August 2014 shows Dr. Kent Brantly working at an Ebola treatment clinic in Foya, Liberia, 23 June 2014. Brantly and Nancy Writebol, who are now suffering from Ebola in Liberia, are scheduled to be evacuated to the United States for treatment, with one patient headed to a special isolation unit at Emory University Hospital near the Centers for Disease Control and Prevention in Atlanta, Georgia, USA. (EEUU, Estados Unidos) EFE/EPA/SAMARITAN'S PURSE / HANDOUT EDITORIAL USE ONLY NO SALES Foto: SAMARITAN"S PURSE

“Eu temo pela minha vida porque gosto muito dela.” Foi o que disse, fora do protocolo, o médico Sheik Umar Khan, um mês antes de perder o que tanto apreciava. Na terça-feira ele se somava a outros médicos e profissionais de saúde que sucumbiram ao pior surto do vírus Ebola. Em uma semana de internação, Sheik apresentou o que já sabia de cor: febre alta, vômito e diarreia com sangue, insuficiência hepática, hemorragia interna. Até então havia salvo mais de cem pacientes da doença. Sua terra natal, Mama Leoa, o reverenciou como herói nacional. 

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Um herói, no entanto, não faz verão nessa crise. Em Kenema, terceira maior cidade de Serra Leoa, enfermeiros entraram em greve depois que três colegas morreram da infecção. Na Libéria, também alcançada pelo surto, um veterano médico do país, Samuel Brisbane, morreu em três semanas. E a preocupação agora se volta para o americano Kent Brantly, que buscou a área de isolamento na organização de caridade que dirigia, a Samaritan’s Purse, depois que se percebeu infectado. O boletim de sexta-feira falava em estado grave com piora durante a noite, mas tentava atenuar o drama com uma bolsa de sangue doada por um menino de 14 anos que Brantly ajudara a curar. No final, pedia que rezassem por ele e por uma voluntária, também americana. E garantia que a segurança do staff é prioridade da instituição. Por esse motivo, a Samaritan’s Purse providenciava o retorno dos profissionais de saúde aos respectivos países de origem, tudo com extrema discrição, respeitando sua privacidade.

“Nós ficamos muito sujeitos à doença porque somos os primeiros a ser procurados quando surgem os sintomas”, explicou Sheik Umar Khan no mesmo dia em que valorizava seu bem maior. “Mesmo com todo o aparato de proteção, estamos sempre em risco.” Sheik parecia jogar muito bem na defesa. A doença é transmitida por secreções do paciente - saliva, suor, sangue, sêmen, lágrimas -, e ele não costumava atender sem a parafernália completa - macacão, máscara, luvas e botas.

Mesmo para o único especialista em febres hemorrágicas virais de Serra Leoa, talvez algo tenha escapado. Benjamin Neuman, virologista da Escola de Ciências Biológicas da Universidade de Reading, no Reino Unido, lembra que seus estudos de laboratório contam com o luxo do planejamento e da relativa tranquilidade. “É diferente no campo”, diz ele ao Aliás. “A velocidade é essencial para conter o vírus de uma epidemia, e as precauções que tomo na minha bancada poderiam ser contraproducentes nos postos de atendimento.”

Outra ponto vulnerável nessa história: os médicos podem estar lidando com uma mutação. O vírus leva o nome de um rio da República Democrática do Congo (antigo Zaire), país onde foi descoberto em 1976 por um grupo de estudiosos belgas. Daí seu tipo mais tradicional levar o nome de EBO-Z (Ebola-Zaire). Mas todas as vezes em que o Ebola reapareceu sua sequência genômica tinha algo de diferente, e não se descarta que esta possa ser uma versão mais grave.

Seja qual tipo for, ainda não existe vacina para a doença. Em parceria, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos e a agência de alimentos e medicamentos (FDA) conseguiram resultados positivos numa proposta testada em macacos (chimpanzés e gorilas também podem carregar a doença, assim como morcegos frutívoros, antílopes e porcos-espinhos). Mas a aplicação em seres humanos leva seu tempo, e enquanto isso os médicos lidam com paliativos e com a ira da população local. “Há rumores, que se espalham inclusive via internet, de que retiramos e nos apoderamos dos órgãos das pessoas mortas nos centros de isolamento”, diz Mariano Lugli, da Médicos sem Fronteiras. Não raro os doutores são agredidos, algo que o infectologista brasileiro Ciro de Quadros, recém-falecido, sentiu na pele. Falando de sua campanha contra a varíola na Etiópia, Ciro destacou a falta de acolhimento: “Eles atiravam pedras, soltavam os cachorros em cima de você”. Literalmente. Sua solução para erradicar a doença no país e diminuir essa zona de atrito foi contratar enfermeiras e outros profissionais de saúde da região.

O psicanalista e escritor Sérgio Telles tem sua teoria para tamanha explosão de agressividade: “A população cria um responsável palpável por aquela situação, um bode expiatório a ser eliminado, e nele canaliza toda a insuportável vivência de fragilidade, desamparo e medo da morte”. Mais tarde, tomada pela culpa, acaba idealizando aqueles que atacara ou destruíra. “O medo da doença e da morte apenas está mais exacerbado no surto”, continua Telles. De forma menos gritante, ele é o responsável pelo pavor que muitos têm de médicos e hospitais, ainda e sempre confundidos com aquilo que combatem.

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Mas, mesmo na aparente assepsia do laboratório, os infectologistas não estão imunes à contaminação letal, tampouco às maledicências. Em 2009, o americano Malcolm Casadaban morreu depois de entrar em contato com uma versão muito fraca - e até então inofensiva aos humanos - da bactéria da peste bubônica, que dizimou um terço da população europeia no século 14. Casadaban estudava a bactéria como parte de um projeto de pesquisa sobre bioterrorismo encomendado pelo governo dos EUA. A necropsia do seu corpo revelou a presença de hemocromatose, doença genética que leva ao acúmulo de ferro no organismo. Casadaban não sabia que era portador do distúrbio. O ferro abriu o apetite da Yersinia pestis, a mensageira da peste, que voltou a ser letal naquele indivíduo tão mineralizado. A lição para os cientistas: redobrar os cuidados quando lidam com material potencialmente infeccioso, agindo como se estivessem vivendo o pior cenário do mundo.

Já no campo das picuinhas, circula uma história envolvendo o brasileiro Henrique da Rocha Lima, primeiro a isolar a bactéria causadora do tifo, em 1916. Para homenagear os pesquisadores que fizeram o primeiro corpo a corpo com a doença (os zoólogos Howard Ricketts e Stanislaus von Prowazek, que aliás foram vítimas desse estupor), ele deu ao micro-organismo o nome de Rickettsia prowazekii. Em contrapartida, Rocha Lima não recebeu o devido crédito, pelo menos quando deveria, ao mapear alterações no volume de fígado e baço em portadores de febre amarela. “Era um sul-americano jovem (tinha 32 anos), presumivelmente ainda pouco experiente, que procurava derrubar um dogma ao criar uma síndrome anatomopatológica característica de uma doença tão bem estudada”, registrou o imunologista Otto Bier. Apenas em 1929 a academia admite a “lesão Rocha Lima”, reconhecida até hoje. Rocha Lima comentaria anos mais tarde como não se contaminou com o desprezo e a falta de reconhecimento: “Acertei, porém, em subir calmamente a uma altura de tranquilidade e indiferença que me permite hoje ver a humanidade mover-se e entrechocar-se com a mesma equanimidade e o mesmo alheamento com que observo a movimentação e o entrechoque de micro-organismos no campo do microscópio. Tenho apenas cuidado de evitar que me contaminem os dedos. Porque assim quase perdi a vida levando a uma mucosa riquétsias do tifo exantemático que havia alegremente contemplado ao microscópio em preparado a fresco”. 

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