Escritora ganesa narra o racismo em seis gerações de uma família

'O Caminho de Casa', de Yaa Gyasi, recentemente publicado no Brasil, foi vencedor do PEN/Hemingway

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Por Faustino da Rocha Rodrigues
Atualização:

“Nós não podemos retornar para a África, podemos?” Nessa pergunta está inscrito o questionamento sobre o lugar do negro na sociedade. Sua resposta exige a consideração de diversos fatores, sobretudo históricos, capazes de reconstituir a trajetória dos africanos escravizados – bem como os que, na África, sofreram as consequências da colonização branca. Todavia, transformar isso em discurso pode soar panfletário. E, sendo panfletário, há grandes chances de o público leitor restringir-se apenas àqueles que se sentem injustiçados. 

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A escritora Yaa Gyasi, nascida em Gana e naturalizada americana Foto: Michael Lionstar

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O Caminho de Casa, de Yaa Gyasi, livro ao qual pertence a citação acima, tem o mérito de refazer a história de negros transformados em cativos fugindo a qualquer tipo de panfletagem. A jovem escritora ganesa – naturalizada norte-americana –, de apenas 28 anos, foi a última agraciada com o prêmio PEN/Hemingway, tendo movimentado mais de um milhão de dólares no mercado editorial. A obra foi publicada recentemente no Brasil, pela editora Rocco, com tradução de Waldéa Barcellos. 

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O Caminho de Casa conta a história de duas meias-irmãs ganesas, da tribo axânti, separadas ainda pequenas. Uma, Effia, fica na África, casando-se com um inglês mercador de escravos. Esi, por sua vez, vai para o cativeiro, sendo transportada para os Estados Unidos. A trama se inicia no princípio do século 18 e o livro revela a trajetória das seis gerações seguintes, de cada uma das irmãs – cada capítulo refere-se a um personagem, de uma geração específica. 

Ao longo da leitura, nota-se a preocupação em demonstrar as marcas da escravidão. Marcas a adquirirem formas diversas, a depender dos personagens, podendo ser insônia, violência, vício em drogas, o refúgio na religião ou até mesmo uma cicatriz no rosto. E, como marcas, estigmas, (con)vivem com elas, constituindo suas personalidades. 

Diante de descendentes marcados por suas histórias, Gyasi distancia-se do heroísmo fácil, ao sugerir a construção de personagens capazes de superar todas as dificuldades e dar lições de moral. Pelo contrário, cada um dos 14 descendentes, distribuídos entre os 14 capítulos em que são protagonistas, tem de viver com suas angústias, medos, inseguranças, timidez, seja ele um negro negociante de escravos na África, seja ela uma adolescente da High School.

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Graças a essas duas trajetórias distintas, a escrita deve cuidar para garantir a homogeneidade do relato. Por exemplo, o clímax em cada uma das histórias, por suas singularidades, deve ser diferenciado. Em uma sociedade tribal, ele se relaciona com os elementos mágicos e simbólicos da organização da tribo; nos subúrbios de Nova York, volta-se para a tensão entre os grupos sociais e a desigualdade evidente. 

A destreza de Gyasi em manejar duas realidades simultâneas e alternadas garante cadência à leitura. Ao longo de cada capítulo há, sempre, a remissão ao passado por parte do protagonista, apresentando a reconstituição de sua história. Valendo-se da terceira pessoa, situa o leitor, ajudando-o a dimensionar os fatos da narrativa. 

Aliás, a narrativa em terceira pessoa confere ao narrador um aspecto de conhecimento universal da história – não somente dos personagens, mas da História de maneira geral. Situa-o como um ponto de confiança no qual o leitor pode se ancorar para acompanhar o desenvolvimento dos fatos. E isso se torna fundamental ao abordar elementos históricos marcantes da trajetória dos EUA. Assim é que surgem, por exemplo, referências aos primeiros sindicatos, às leis como a do “negro fugido”, à guerra civil, ao castelo de Cape Coast, na Costa do Ouro, na África. 

A partir da terceira pessoa tem-se uma objetividade maior da narrativa, fugindo de impressões singulares a prevalecerem quando em primeira pessoa – salvo as suas louváveis exceções. Assim sendo, a obra de Yaa Gyasi assemelha-se muito mais a um relato, de forte conteúdo real ao mesmo tempo em que é dotado de grande valor literário. 

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O livro se mostra tão bem elaborado – e, disso, compreende-se o trabalho de sete anos de escrita empreendido pela autora – que observa-se como que este eixo mais impessoal do relato histórico adequa-se perfeitamente à perspectiva dos próprios personagens, bem como seus posicionamentos frente às suas histórias – enlaçando, assim, a realidade à literatura. Mais especificamente, isso ajuda a entender como o leitor não pode esperar encontrar grandes heróis negros entre os personagens de Gyasi – o mais importante é o homem e a mulher comuns.

Na condução de sua narrativa, Gyasi não faz uma idealização dos negros, descendentes ou não de escravos. O heroísmo é bem mais sutil, pois a autora de O Caminho de Casa apresenta a superação dos desafios de cada personagem por meio da trama da vida comum. Todos eles, sem exceção, sentem medo, receio, choram, vivem angústias e não superam suas dificuldades por pura e simples volição. 

Em O Caminho de Casa, são muito mais importantes as circunstâncias sociais em que o racismo é notório – como no caso da sociedade norte-americana –, e as dificuldades e conflitos tribais existentes na sociedade ganesa – esta, surgida em grande medida pelos anos de colonialismo. E são tais circunstâncias que revelam o papel de cada personagem, sua luta cotidiana, sua reação ao racismo, evidenciando suas marcas, que despontam, por exemplo, por meio da reprodução de guetos nas cidades grandes. É aí que se manifesta o racismo. E, igualmente, é aí que repousaria o heroísmo. 

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Enfim, O Caminho de Casa é um livro muito próximo do real. Publicado em um período de crise – de resgate de ideologias de extrema-direita e, portanto, de heroísmo grandiloquente – a obra foge da ingenuidade. Gyasi mostra que a bravura é bem mais singela. O herói, simples. *Faustino da Rocha Rodrigues é jornalista, cientista social e professor da Universidade do Estado de Minas Gerais 

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