Estrondo na selva

Há 85 anos, pedaços de cometa tingiam de vermelho o céu da Amazônia e atemorizavam pescadores e seringueiros

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Por Luciana Garbin
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O fim do mundo surgiu de repente. Em plena manhã, o sol ganhou tom vermelho-sangue e uma poeira espessa cobriu de escuridão a floresta amazônica na região do Rio Curuçá, afluente do Javari. Cinzas finas se espalharam sobre árvores e cursos d’água e grandes bolas de fogo despencaram do céu, em meio a sibilos e trovões. Três diferentes explosões, uma mais forte que a outra, fizeram a terra tremer e estrondos alcançaram centenas de quilômetros. Apavorados, seringueiros largaram o que faziam para um último abraço na família enquanto pescadores caíam de joelhos nas margens de rios para encomendar a alma a Deus. Em Remate dos Males (atual Benjamin Constant) – onde a população não chegou a ver as bolas de fogo, mas ouviu explosões –, muitos pensaram que o Exército testava novos canhões no Forte de Tabatinga. Eram quase 8 horas de 13 de agosto de 1930.

Quando o frade franciscano Fidelis D’Alviano chegou à região do Amazonas, cinco dias após o fenômeno, a população continuava aterrorizada. Se não fora o fim dos tempos, o que havia acontecido então? Não adiantou o religioso entendido em ciências cogitar que as bolas de fogo poderiam ser bólidos vindos do espaço, que, ao entrarem na atmosfera terrestre, provocam brilho intenso seguido por estrondo. A tese de bombas e gases venenosos despejados por aviões de uma inexistente guerra de brasileiros e peruanos era mais aceita.

O pesquisador Ramiro visitou a região em 1997: feras e 'caceteiros' Foto: Arquivo Pessoal

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Etnógrafo e linguista, frei Fidelis refutou explicações místicas para se concentrar em pesquisas in loco. Visitou comunidades ao longo do rio, entrevistou quase uma centena de pessoas e produziu um relatório objetivo do caso. Por mero acaso, o religioso responsável pela catequese de índios ticunas se tornaria o único emissário para o mundo de um dos mais importantes impactos do século 20, que agora, oito décadas depois, ganha sua descrição científica mais completa e detalhada. Escrito pelos pesquisadores Ramiro de la Reza, Henrique Lins de Barros e Paulo Roberto Martini, o artigo O Evento do Curuçá: A Queda de Bólidos em 13 de agosto de 1930 faz parte do primeiro de dois volumes da obra História da Astronomia no Brasil (Companhia Editora de Pernambuco – Cepe), organizada por Oscar Matsuura. Uma tradução para o inglês será publicada em revista internacional.

O relato de frei Fidelis foi reproduzido em 1931 pela agência Fides em L’Osservatore Romano, o jornal oficial do Vaticano. Logo abaixo do título – A queda de três bólidos no Amazonas: estranho e aterrador fenômeno –, aparecia o local de origem do texto: “São Paulo de Olivença (Amazonas, Brasil)”. O material serviu de base para uma notícia do jornal inglês The Daily Telegraph, que, em tom sensacionalista, falou do perigo que a civilização correra. O caso, porém, acabou esquecido e permaneceu inédito no Brasil até 1995, quando Ramiro, hoje professor emérito do Observatório Nacional, encontrou um artigo do astrônomo britânico Mark Bailey sobre o “evento do Curuçá”. Nele, o especialista inglês mencionava texto de cientistas russos sobre o caso acontecido em 1930 na Amazônia que lembrava o fenômeno do Tunguska, ocorrido 22 anos antes do outro lado do mundo, na Sibéria. Lá, um imenso objeto, com diâmetro entre 60 a 100 metros, explodiu na atmosfera causando violenta onda de choque que devastou 2 mil quilômetros quadrados de mata. Em 1923, o geofísico Leonid Kulik organizou uma expedição até o ponto de queda e descobriu que a população transformara a área em local sagrado. 

Logo após desenterrar a história do Curuçá, Bailey publicou artigo no jornal inglês The Observatory em que propõe a hipótese de que um cometa conhecido desde os tempos de Cristo, o Swift-Tuttle, teria sido o responsável pela sensação de fim do mundo no “Tunguska Brasileiro”. Entre 11 e 13 de agosto, quando na jornada em volta do Sol a Terra passa pela órbita desse cometa, ocorre no Hemisfério Norte a chamada Chuva de Perseidas, em que partículas cometárias que parecem vir da direção da constelação de mesmo nome caem na Terra como estrelas cadentes. Para alguns historiadores, esse fenômeno ajudou a popularizar a astronomia nos séculos 19 e 20. “Eu trabalhava em outra área, de pesquisa estelar, mas vi um paper escrito por esse inglês perguntando se alguém do Brasil sabia do assunto. Foi quando resolvi me dedicar a ele”, conta Ramiro.

Para começar, ele falou com Henrique, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, que na época dirigia o Museu de Astronomia e Ciências Afins. Com ajuda do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), os dois conseguiram fotos de satélite da área onde teria ocorrido a queda, mas não viram nada que chamasse a atenção. “Penduramos as imagens na minha sala e, após semanas, notei pelo canto do olho uma pequena mudança numa delas”, conta Henrique. “Disse ao Ramiro que podia ser delírio, mas tinha enxergado um novo detalhe. Tiramos foto da foto, mudamos o contraste, determinamos os componentes e achamos o local do que seria a cratera.”

Ramiro então apurou no Observatório Sismológico de San Calixto, em La Paz, Bolívia, que às 7 horas de 13 de agosto de 1930, a 1,3 mil quilômetros de distância do ponto de impacto, foi registrado um tremor de 4,7 graus na escala Richter. O intervalo de uma hora deve-se à diferença de fuso entre os países. Ainda foram consultados especialistas em Botânica, que determinaram que a cobertura vegetal indicada pelas imagens de satélite era esperada porque a floresta ali leva em média 30 anos para se recompor e já haviam se passado 65. Em 1997, a tarefa mais difícil: Ramiro e outros pesquisadores, como Paulo Roberto, gerente do Projeto Pan-Amazônia do Inpe, fizeram uma expedição até o Vale do Javari e encontraram a cratera a 25 quilômetros do Rio Curuçá, na latitude 5.18 S, longitude 71.65 O.

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Em companhia do sertanista Sidney Possuelo e de equipes de televisão da Austrália e do Brasil, o grupo saiu de Tabatinga, no Amazonas, e viajou dois dias e meio de barco pelos Rios Javari e Curuçá até a boca do Igarapé Esperança. Depois, com apoio de GPS, encarou 20 quilômetros de caminhada na floresta virgem até chegar ao astroblema – estrutura circular no solo terrestre causada pelo impacto. A região é terra dos temidos índios corubos, conhecidos como “caceteiros”, e dos não menos assustadores índios “flecheiros”. “Foi lindo, mas nunca mais volto lá. É um lugar onde homem branco não entra. Só tem animais e indígenas isolados e você pode morrer a qualquer momento”, conta Ramiro, rindo. 

A aventura durou 18 dias e possibilitou a coleta de algumas pedras redondas, enviadas para análise na Austrália. Elas são consideradas anormais para a região, na qual predominam argila e arenito. Segundo Paulo Roberto, ainda não foi feita análise do irídio, elemento químico que não existe na Terra e só aparece onde houve impacto. Mesmo assim, o Curuçá passou a integrar o seleto trio dos maiores eventos do século 20 – menor que o Tunguska e maior que outro fenômeno ocorrido em 1935 na Guiana Inglesa, do qual os cientistas têm poucas informações. “Fenômenos como o Curuçá são muito raros e registros desse tipo permitem estabelecer uma hipótese do que pode ocorrer nos próximos cem anos, por exemplo, além de esmerar o modelo com que se trabalha”, explica Henrique. “Também mostram que a ciência brasileira está ativa.”

O levantamento dos três especialistas traz, além de relato do frei Fidelis e da reportagem traduzida do jornal do Vaticano, um estudo dos diferentes aspectos físicos e sociológicos do Curuçá. Com explicações para o que os homens da floresta amazônica viram, ouviram e sentiram em 1930, como bolas de fogo no céu, queda de cinzas antes e depois dos estrondos e tremor de terra, bem como a ausência de menção a incêndio ou ondas de calor. Também diferencia os dois tipos de bólidos que podem atingir a Terra e, em tese, acabar com a humanidade dependendo do tamanho e da velocidade, como ocorreu com os dinossauros há muitos e muitos séculos. O primeiro são os cometas – compostos de gelo sujo e poeira vindos de regiões mais afastadas do centro do Sistema Solar e de órbitas mais conhecidas. O segundo são os asteroides – formados por rochas ou metais, provenientes em sua maioria de um cinturão entre Marte e Júpiter e potencialmente mais perigosos por não terem hora nem local para cair.

Mas o que frei Fidelis certamente teria gostado de saber está nas páginas finais: o motivo de terror de seringueiros e pescadores há 85 anos foi provavelmente um fragmento de cerca de 340 metros de um bólido extraterrestre formado por gelo e poeira que teria se separado do corpo principal do cometa Swift-Tuttle e caído na Terra no sentido Norte-Sul, compatível com o que se espera de um objeto vindo da direção de Perseidas. A uma altura entre 102 e 111 quilômetros do solo, ele se desintegrou com a pressão da atmosfera e partes mais densas que ainda resistiram atingiram a floresta a uma velocidade de 1,2 km/s, distribuindo-se por uma área de 5,5 quilômetros por 2,2. A maior delas formou a cratera de 400 metros de diâmetro e 50 de profundidade na área do Javari, hoje completamente coberta pela mata e só habitada por animais selvagens e índios “caceteiros” e “flecheiros”.

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