Existe uma tendência mais ou menos recente, no âmbito das galerias que comercializam arte, de se criarem espaços expositivos semelhantes, ao menos na escala, às grandes salas de museus e outras instituições de exibição. Por si só favoráveis a obras de grandes dimensões, esses ambientes talvez colaborem para a disseminação de um tipo de arte que, acima de qualquer coisa, impressiona os visitantes por seu tamanho avantajado.
No entanto, também em arte, tamanho não é necessariamente documento. Obras de dimensões variadas, incluindo as grandes, expostas em galerias que mantêm a média habitual nas proporções de suas salas podem tirar partido dessa condição, potencializando a si mesmas pela diversidade de relações que estabelecem com o espaço de que dispõem – fora da simples ideia de obras grandes para grandes ambientes.
A exposição Dobradura Curva, na galeria Raquel Arnaud, reúne um conjunto desse tipo, que repõe questões com que o trabalho de Iole de Freitas lida há bastante tempo, a partir das várias respostas que dá à sua pergunta sobre “para que servem as paredes”, instalando-se não apenas em espaços diversamente amplos como as salas de exposição do Centro de Arte Hélio Oiticica ou do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; os galpões da Bienal do Mercosul ou o átrio da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre; a rotunda do CCBB ou o saguão de entrada do Centro Maria Antonia, em São Paulo, além do tricentenário edifício Fridericianum, em Kassel; mas também em espaços menores de exposição em galerias e mesmo locais de proporções domésticas, como algumas residências e a pequena piscina do Museu do Açude (uma antiga moradia, no Rio).
É possível ouvir o eco daquela pergunta nas novas peças expostas, o que envolve a sua negociação com a arquitetura do espaço expositivo e consequentemente com os nossos corpos. O título da mostra fala de uma oposição entre abaulamento e reentrância, presente nas chapas de aço inoxidável de esculturas de grande porte, assim como de obras menores, árdua transferência para o metal do que Iole experimenta primeiro em folhas de papel A4, com dobras, torções e outras operações, usando as mãos e fita adesiva.
Nos relevos agora colocados em sequência nas paredes da menor sala da galeria, a hábil articulação dessas formas discrepantes nas superfícies das chapas de que são feitos cria em cada um deles um campo próprio, implicando a percepção do que se passa também no seu oco interior à mostra. Em que pese a enorme diferença de escala, a primeira das três grandes esculturas do piso térreo, igualmente em aço, comporta-se de modo parecido ao desses relevos, na reciprocidade concentrada de seus vazios e dobras. Mas sua maior variedade e leveza de movimentos faz com que seja muitas nela mesma, não se deixando abarcar, já que, de qualquer distância, modifica-se radicalmente à medida que nos movemos pela sala.
Credito à “particular concepção de equilíbrio e flutuação própria da artista”, destacada por Elisa Byington no texto de apresentação da exposição, a inusitada neutralização do peso e da rigidez específicos do material em todas as peças. De todo modo, o relativo ensimesmamento dessa primeira escultura torna a sua ação no espaço diferente do que acontece com as demais no mesmo andar, virtualmente mais generosas à interação com o visitante, seja porque é como se uma delas tivesse suas partes equilibradas por pouco e resistisse à ação da gravidade graças a um apreensivo sistema de mínimos apoios de uma parte na outra; ou porque a maior de todas as peças, ao contrário, difunde no seu entorno o esforço dramático (i.e., de elementos em conflito) para a manutenção das formas onduladas de uma única e enorme chapa de aço, por tirantes que sugerem perfurações. E há ainda uma última escultura instalada a céu aberto, junto à parede de fundo do jardim, que, com seus dois elementos tubulares muito simples – uma reta pontiaguda no fim da qual descansa um círculo que se quer imperfeito – suspende-se num tempo entre impulso e estabilidade, plena em seu lugar e simultaneamente lançando-nos com ela para fora.
Talvez se possa pensar então que o trabalho de Iole de Freitas ativa nos ambientes da galeria uma espécie de corrente alternada que nos liga a essas obras, indo, entre outras coisas, da pura opacidade à promessa de transparência. Do que sobra um complexo de modos de habitar e, para tanto, ininterruptamente reconstruir espaços, por mais evidente que seja qualquer presença.
* João Bandeira é escritor, autor de Quem Quando Queira (Cosac Naify, 2015), entre outros, atuando também como curador de exposições de arte.
Dobradura Curva - Iole de Freitas Galeria Raquel Arnaud Rua Fidalga, 125, Vila Madalena Telefone: (11) 3083-6322 2.ª a 6.ª, 10h às 19h; sáb., 12h às 16h Grátis. Até 5/8