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Feministas francesas pedem fim da predominância masculina no idioma

Uma guerra civil linguística está se desenrolando na França

Por Gilles Lapouge
Atualização:

A França entrou em guerra. Uma guerra civil envolvendo franceses contra franceses. A História nos ensina que guerras civis às vezes são mais cruéis que os conflitos clássicos, em que duas nações se lançam uma contra a outra. A Revolução Francesa foi uma guerra civil, época em que a guilhotina funcionou a todo vapor. Na Renascença e na Idade Moderna os confrontos entre protestantes e católicos, na França, Espanha e Alemanha, foram verdadeiros massacres. A nova guerra civil que assola a França tem uma característica singular. Ela diz respeito aos homens e as mulheres, ou mais exatamente, ao “masculino” e ao “feminino”.

Cena de 'Domicílio Conjugal', filme de François Truffaut 

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Foi proposta uma reforma para que a gramática francesa deixe de outorgar ao masculino uma superioridade absoluta sobre o feminino. Essa reforma é chamada “escrita inclusiva”. Vamos explicar: como muitas línguas (não a tailandesa, a turca ou a inglesa), a francesa estabeleceu a supremacia do masculino sobre o feminino. Durante muito tempo os nomes das profissões eram quase todos masculinos. Há alguns anos, enfim, esse machismo linguístico começou a desaparecer. Hoje nos referimos a uma escritora, bombeira, engenheira.

Mas o que enerva as feministas é que, quando fazemos referência a um grupo que abrange ambos, feminino e masculino, é o masculino que prevalece. Por exemplo, quando citamos uma sociedade composta de 49 mulheres e um único homem, a frase será no masculino. Tal absurdo tem base na regra gramatical: em francês o masculino predomina sobre o feminino.

Para responder a esse absurdo foi proposta a “escrita inclusiva”. Desta maneira, quando se trata de um grupo abrangendo mulheres e homens, vamos ter de dividir a palavra “deputé” (deputado), por exemplo, em três partes ligadas por hífen. A palavra comportaria então a raiz do termo + sufixo masculino + hífen + sufixo feminino + hífen + a letra s, indicando o plural. Resultado: em vez de escrevermos a palavra como hoje (deputées), devemos adotar o termo “député-e-s” (deputadas).

Este é o pequeno instrumento da igualdade entre feminino e masculino que pôs fogo na pólvora e lançou o primeiro tiro de canhão dessa guerra atroz. No início as escaramuças foram brandas, leves. Em geral (mas nem sempre) as mulheres é que defendiam a escrita inclusiva e os homens eram contra. Mas há alguns dias forças poderosas, mais violentas, entraram na batalha. E os tiros começaram a partir de todo lado, como em Austerlitz ou Verdun.

No campo do “feminino” um grande editor de livros de classe, Hatier, modernizou sua oferta utilizando a escrita inclusiva, Nas escolas o combate até agora é incerto. Vamos esperar a fumaça se dispersar para contarmos os mortos e feridos. Em compensação, do lado dos que são contra, os grandes batalhões já começam as manobras.

Em primeiro lugar, a guardiã da língua francesa, a Academia Francesa. Todos esses velhos senhores e velhas senhoras se envolveram para valer no assunto. E sem titubeios partiram para o ataque da reforma, ou melhor, contra essa “aberração”, essa “tragédia”, e anunciaram ao mundo que a escrita inclusiva é um perigo mortal para as gerações futuras. Os acadêmicos, por unanimidade, assinaram um polêmico documento, ainda mais meritório pois a academia conta com mulheres (não muitas, é verdade): quatro mulheres e 30 homens atualmente.

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O governo, sem recorrer ao vocabulário apocalíptico da Academia, defende a mesma posição. O primeiro ministro, em caráter de urgência, decidiu que os documentos oficiais ignorarão a escrita inclusiva.

Do lado feminino, temos uma análise serena e inteligente de uma senhora muito sábia. Segundo ela, afirmar como verdade absoluta que o “masculino sempre prevalece sobre o feminino”, implica o risco de mergulhar as crianças nos abismos da perplexidade, da incerteza, da revolta e da angústia, especialmente se adotamos a tese de Lacan, segundo a qual “a linguagem estrutura nosso pensamento”.

Tenho a minha opinião sobre esse debate formidável, mas vou me proteger sob o escudo da “imparcialidade do jornalista”, e não direi se meu espírito, meu inconsciente e meu sentido da História me empurram para o lado da escrita inclusiva, ou da academia francesa. Tenho muito medo de ser atingido por uma bala perdida. / Tradução de Terezinha Martino

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