Em Globos (ainda não traduzido para o português), o segundo volume da trilogia Esferas, do filósofo alemão Peter Sloterdijk, o leitor é introduzido na globalização metafísica, que teria começado com os gregos. A partir do período helenístico, a esfera se tornou o modelo para todo o universo. O globo celestial (ou seja, o cosmos) é representado no ombro de Atlas. Esse titã seria, segundo Sloterdjik, a imagem do filósofo clássico, que suporta o peso do mundo pagão.
No brilhante ensaio recém-lançado no Brasil, A Ascensão de Atlas: Glosas sobre Aby Warburg, o filósofo argentino Fabián Ludueña Romandini dialoga com Sloterdijk e expande sua interpretação, ao propor, a partir dos “documentos da loucura”, uma nova filosofia especulativa do cosmos, sendo os céus, e não a Terra, o lugar existencial do ser humano. Ele parte do gigante grego, cuja figura ressoa na grande obra inacabada do historiador da arte Aby Warburg (1866-1929): um atlas de imagens chamado Mnemosyne (nome da Memória do cosmos), com setenta pranchas e 1.300 ilustrações que descrevem as migrações das imagens, da Antiguidade e do Renascimento até o presente. Essa história da cultura global (ela não está limitada ao mundo da arte) é discutida e reavaliada por Ludueña Romandini, para quem a coleção titânica, tal como foi concebida por Warburg, apresenta limitações materiais (tornou-se obsoleta), pois só no tempo da globalização realizada (o nosso) a obra em questão poderia, por meio da internet, ir além do Globo terrestre (com todas as suas imagens naturais e artificiais), atingindo uma escala cósmica. Aqui, o filósofo argentino está propondo examinar o atlas de Walburg não pelas imagens que ele contém, mas pelos princípios de “operatividade” que potencialmente autoriza.
Conhecido no Brasil como o autor de A Renovação da Antiguidade Pagã: Contribuições Científico-Culturais para a História do Renascimento Europeu, publicado em português em 2013, Aby Warburg precisou internar-se no hospital psiquiátrico Bellevue, em Kreuzlinge, Suíça, após a 1.ª Guerra Mundial. Mas sua loucura, como afirma Ludueña Romandini, “não foi apenas uma experiência desditosa, padecida e logo superada. Pelo contrário, Warburg transformou a própria loucura na matriz metodológica que organiza a totalidade de seu trabalho de pesquisa”. Assim, não é de estranhar que, para falar de seu próprio colapso mental, Warburg tenha utilizado a linguagem que melhor lhe convinha, a dos antigos deuses pagãos, demonstrando que sua pesquisa e seu delírio eram inseparáveis. Cada imagem do atlas é, desde então, a sede vacante dos deuses no exílio; a astúcia desses deuses, porém, é ocultarem-se nos detalhes inesperados, nas margens.
O historiador da arte se dizia acossado pelo inumano (era supersticioso, palavra que significa, no seu sentido original, “temeroso dos demônios”); às vezes, como na conferência que fez no sanatório, punha de lado os textos clássicos e recorria aos mitos ameríndios, atuando, de acordo com o autor de Ascensão de Atlas, “como um xamã capaz de conjurar e dominar os demônios que tinham sido a causa do seu colapso”. A evolução da civilização ocidental, segundo Warburg, implicou a domesticação de antigas forças demoníacas, ou “daimônicas”. Mas teria o estudioso alemão conseguido realmente apaziguar os seus próprios “dáimones”, que são os demônios antigos dos grandes filósofos gregos? “Warburg não era, a rigor, um ‘possuído’”, declara Ludueña Romandini, comparando-o a Sócrates e acrescentando: “Sua loucura deriva, ao contrário, de seu temor de cair presa dos demônios”. O fato de Warburg ter lutado contra isso não significa, no entanto, que tenha se curado: “Nossa afirmação, ao contrário, é que a loucura é constitutiva do trabalho de Warburg antes e depois da sua internação”.
Se o historiador da arte encontrou seu próprio método para lidar com as potências extra-humanas que o perseguiam, isso ocorreu, de acordo com Ludueña Romandini, porque diagnosticara a sobrevivência dos demônios antigos, o que lhe permitiu assentar as bases de uma demonologia, concebendo-a como a ciência da “Era de Atlas”. Para Warburg, a loucura havia tomado posse do mundo na sua totalidade, e adquirido aparentemente configurações inéditas e irreconhecíveis. Talvez, na era tecnológica, os deuses antigos em fuga não tivessem de fato se ausentado, mas se metamorfoseado. O reino dos demônios incontroláveis, em suma, havia retornando, e seu arauto era o historiador da arte. “Certamente existia em Warburg”, afirma o ensaísta argentino, “uma profunda inquietude pela pervivência das potências do mito em seu próprio século, vale dizer, em sua própria psique: a experiência de Kreuzlingen o instruíra a esse respeito de maneira abundante e dolorosa”.
*Sérgio Medeiros é poeta, dramaturgo e ensaísta. Publicou, entre outros livros, 'A Idolatria Poética ou a Febre de Imagens' (Poesia) e 'As Emas do General Stroessner e Outras Peças' (Teatro), ambos pela editora Iluminuras