Fim da compaixão?

Doença ou desvalia implica trégua. Por isso, em locais de fragilidade ou morte não devemos enfatizar o que nos divide

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Por Renato Janine Ribeiro
Atualização:
Mantega. Insultos são sintoma de processo que transforma o adversário político em inimigo Foto: REPRODUÇÃO

Na terça-feira, dois relatos me surpreenderam. Um eu li no Facebook, replicado centenas de vezes: a jornalista Neli Pereira, da BandNews, dizia ter sido mal atendida por um médico do Hospital Sírio Libanês. Contou que ele usou o tempo de consulta para sugerir que consultasse um colega, a quem ela pagaria R$ 700 pelo atendimento, e encerrou a conversa pedindo para participar do programa de rádio dela. Outro, todos vimos nos jornais: a forma como o ex-ministro Guido Mantega, que estaria levando a mulher para se tratar de câncer no Hospital Israelita Albert Einstein, foi ofendido na lanchonete do mesmo, a ponto de ter que se retirar. A coincidência é que essas condutas indesculpáveis ocorreram em dois hospitais top de linha de São Paulo. Mas o chocante mesmo é que ambientes que deveriam ser de acolhida, de cuidado, foram poluídos, num caso, pela ganância, no outro, pelo desdém pelo sofrimento alheio.

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Estaremos vivendo o fim da compaixão? Ninguém vai a um hospital para se divertir. É um lugar onde a maior parte se dirige preocupada, quase sempre adoentada e com sintomas desagradáveis. Um hospital, mais que isso, por vezes respira morte. O câncer, de que sofre a mulher do ex-ministro, é doença de difícil e doloroso tratamento, embora a cura seja cada vez mais frequente. Nesses lugares se espera tudo, menos agressão. Na primeira narrativa, o médico falta com a ética mais elementar de sua profissão; mais que isso, com o respeito devido a um ser humano. Pode alguém escolher um ofício da saúde, para usar as palavras de um médico no filme Montenegro (1981), de Markavejev, porque “só lhe interessa o dinheiro”? Sem dúvida, o caso narrado tem de ser exceção entre milhares de médicos, mas infelizmente só reforça o descontentamento com eles - e juízes (mas esse desprestígio de duas das três grandes profissões tradicionais - a terceira são os engenheiros - seria assunto para outro momento). Minorias podem impopularizar uma profissão. Esse caso precisa ser apurado pelo hospital e pelo Conselho de Medicina.

Os insultos na lanchonete do Einstein causaram mais polêmica. Deixemos de lado a questão da presença, ou não, de médicos na turba mal-educada. Cabe lembrar que um lugar dedicado à saúde deve ter caráter quase de santuário. Sempre foi tradição, no Brasil, não falar mal de mortos, pelo menos por ocasião da morte. Essa praxe pode ter raiz em alguma superstição, mas consiste - ou consistia - na convicção de que há um limite para todas as pendências e conflitos que tenhamos em vida. Tudo é transitório, “é pó”, como diz a religião cristã. Não é o medo de que o cadáver venha nos puxar pelo pé no meio da noite. É a crença de que a morte põe termo a todas as vaidades humanas. Vaidade é um termo com dois sentidos, que se ilustram e complementam. Refere-se ao vaidoso, à pessoa exibida, que se considera especial, superior aos outros - o que, numa sociedade democrática, tende a ser intolerável. Mas também se refere ao que é vão, inútil, ocioso, ao que dá em nada. You’re So Vain, a música de Carly Simon (1972), joga com os dois sentidos, que por sinal em inglês são dados por uma palavra só: “Você é tão vaidoso / Você o que faz é tudo em vão / De que adianta ser tão besta...”.

A morte põe fim a isso tudo. Por isso, os lugares da morte são lugares de respeito. Não se imagina ofender alguém num cemitério, no velório, na missa pelas almas. Isso se estende ao lugar de fragilidade que é o hospital, o posto de saúde, a unidade básica. Instauramos um cessar-fogo em meio às guerras do cotidiano. Recordo expressões como salvo-conduto, suspensão de hostilidades, trégua. Nesses lugares, não devemos enfatizar o que nos divide. Médicos de países em conflito armado atendem aos feridos do inimigo - assim ordenam as leis de guerra. Em combate, podemos, talvez devamos, matar o inimigo; mas, quando ele é aprisionado ou se rende, da inimizade só restam o direito de mantê-lo preso e a obrigação de alimentá-lo, tratá-lo, resguardá-lo. Isso foi violado na lanchonete do hospital. 

Há gente que trata aqueles de quem discorda como se estivéssemos em guerra civil. Pior que isso: porque, como afirmei, a doença ou a desvalia implicam uma bandeira branca. Nem mesmo isso está sendo respeitado. Fiquei horrorizado com certas manifestações de facebookers e de leitores de jornais. Um dizia que o PT tem que ser tratado à bala. É uma clara degradação do espaço político em território de guerra. É esquecer que a construção do Estado consiste, antes de mais nada, na substituição da guerra pelas palavras, da matança pela convivência. Gente que diz isso passa o atestado de que não está preparada para o convívio no Estado de Direito. Quem defende o assassínio é criminoso. Pena que o Brasil seja tão leniente com o crime. 

Há dois pontos finais a assinalar. Começo pela compaixão. Recentemente, num debate com psicanalistas lacanianos, eles a criticaram. Afirmam que há uma cumplicidade ruim entre quem sente pena do outro e aquele que se vitimiza. Assim se forma uma situação viciada da qual não se sai. Mas essa ideia, embora correta em seu enunciado, parte de um equívoco quanto ao que compaixão significa. Compaixão não é ter pena. Não é dar esmola. Não é manter o outro no estado de dependência. A compaixão, a “piedade” de Jean-Jacques Rousseau, é a reação, quase instintiva, que nos faz sofrer junto a qualquer ser vivo que sofra. Como bem observa Lévi-Strauss, ela vai além do mundo humano: abrange os animais (penso que hoje se pode discutir se chegaria também aos vegetais; a jovem lapsariana do filme Um Lugar Chamado Notting Hill diria que sim). Ela realiza a ideia de John Donne: “Nenhum homem é uma ilha isolada; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. Não é o atendimento no varejo, que meus amigos criticavam: é uma postura diante da sociedade, mesmo da vida. Compaixão, mais que dar esmolas, envolve lutar pela supressão da pobreza e da miséria. Não é só cuidar de um cão machucado; é - no mínimo - lutar pela morte sem dor dos animais que comemos. Para vários, é também recusar-se a comer cadáveres, mesmo de animais não pensantes.

Ora, o que mostram esses episódios que dessacralizam os templos do cuidado é que está se desvalorizando o respeito ao sofrimento. Parece que regredimos a antes de Rousseau. Até o século 18, o grande espetáculo de mídia eram os suplícios em público, em alguns casos, precedidos de demorada tortura. Até a década de 1930, se enforcava ou guilhotinava na praça. Fizemos bem em substituir esses shows pela televisão, mas muita gente ainda quer dar vazão a essa barbárie, ao anseio de matar, destruir, fazer sofrer. Gostemos ou não, é mais frequente esse tipo de desrespeito ocorrer contra petistas e esquerdistas do que contra tucanos ou direitistas. Isso significa que ações de desrespeito são mais cometidas pela direita do que pela esquerda. Esse ponto deveria chamar nossa atenção como educadores. Uma parte de nossa sociedade, mesmo tendo dinheiro, está sendo mal-educada. Não respeita os princípios do convívio social, a ponto de violar o último bastião do respeito, o silêncio perante a dor ou sofrimento alheio. Era o refúgio da humanidade. Parece que nem isso. 

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Assim, há quem substitua a vida em sociedade pela guerra de todos contra todos. Os desrespeitosos da lanchonete justificarão o que fizeram acusando o ex-ministro de criminoso. Mas todo país que entra em guerra alega isso. Acredita quem for bobo. Na 1ª Guerra Mundial, quantos não ficavam chocados de saber que, depois de uma vitória alemã, os bispos germânicos rezavam um Te Deum - e o mesmo faziam os franceses após uma vitória de seu país? Como se Deus fizesse guerra. O mesmo vale quando se proclama um lado inteiro como criminoso. 

Há um problema no modo como a oposição conduziu nestes anos a discussão política no Brasil. Ela a reduziu a uma crônica policial. Em vez de construir projetos alternativos de qualidade - e poderia, sim, ter proposto para o País coisa melhor do que o PT fez, ou pelo menos coisa boa, que preservasse as conquistas sociais do petismo e promovesse por exemplo o pequeno empreendedor -, limitou-se a torcer para que polícia, promotores e juízes fizessem o trabalho que ela não conseguia ou não queria fazer. O resultado é que parte significativa da população, em alguns poucos Estados, como São Paulo, criminalizou a simples simpatia pelo PT. 

Isso traz uma consequência preocupante: quando o outro lado é visto como criminoso, é claro que não pode ser tratado com respeito. Uma coisa é reconhecer a vitória eleitoral de um adversário, outra a de um inimigo. Ora, se o adversário é pintado como ladrão, ele se torna inimigo. Isso deslegitima, aos olhos de uma parte minoritária, mas falante da população, o próprio processo eleitoral - e a própria democracia. Voltam alguns a querer a intervenção cirúrgica dos militares, para que rapidamente sanitizem o ambiente e o deixem pronto para os homens de bem exercerem o poder. É um 1964 redivivo, com a diferença de que os militares não querem mais esse papel, os empresários serão malucos se trocarem Joaquim Levy por uma aventura de tal ordem e a embaixada norte-americana certamente não quer criar problemas novos para seu país. No pequeno varejo das lanchonetes, das praças de alimentação, das filas de cinema e de supermercado, isso pode tornar impossível o convívio entre diferentes. Perde quem só frequenta seus próprios clones e não saboreia a diversidade de opiniões e valores.

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