PUBLICIDADE

Gabriel, o articulador

Foi chamado pelos dois lados. Queriam discrição e alguém que conhecesse muito bem o sistema

Por Monica Manir
Atualização:

Na quarta-feira da semana passada, dia 29, Gabriel Jorge Ferreira fez sua caminhada madrugadora na região do Morumbi. Percorreu os seis quilômetros de praxe, cruzando com os serviçais que atendem às casas do bairro de classe alta de São Paulo. Já na própria residência, debruçou-se ao pé do rádio para ouvir a quantas andavam o trânsito, a política, a economia. É hábito de infância acompanhar a evolução do mundo pelas ondas radiofônicas, ainda que proveniente dos vizinhos. Sua família só adquiriu um aparelho em 1952, quando moravam em Barretos. Ouviram de orelha emprestada, portanto, as notícias da 2ª Guerra. Gabriel se organizava para o almoço de logo mais com Roberto Setubal. Pedro Moreira Salles, presidente do Unibanco e não por acaso seu chefe, ligara no dia anterior perguntando se ele podia almoçar com o presidente do Itaú. Gabriel disse sim, e garante que sem estranhamento. São também de praxe conversas com Setubal por ser ele, Gabriel, presidente da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF). Além disso, este fora vice daquele durante a gestão presidencial de Setubal na Federação Brasileira de Bancos, de 1998 a 2001 (o advogado, aliás, o sucedeu no mandato seguinte). Conhecem-se bem. Foi apenas no Centro Empresarial Itaúsa, no bairro do Jabaquara, mais propriamente na sala de Roberto Setubal, que Gabriel disse ter sabido da fusão entre o Itaú e o Unibanco, casamento que gerou o maior banco do País e o 17º do mundo. "Essa negociação foi conduzida pessoalmente pelos dois, pelo Pedro e pelo Roberto, e só pelos dois", afirma. "Eles se encontraram num período de 15 meses, foram longas conversas para amadurecer a idéia, não teve nenhum papel, a não ser anotações de próprio punho." O que queriam de Gabriel? "Eu seria o encarregado de preparar o instrumento." O instrumento era a minuta do contrato que definiria os princípios da transação. Para a tarefa, não bastava circular entre Setubal e Moreira Salles sem provocar suspeita. Ambos queriam alguém que tivesse experiência em atos societários e conhecesse bem os assuntos mais relevantes do mercado financeiro. Em 50 anos de Unibanco, Gabriel participou de pelo menos uma centena de operações envolvendo não apenas fusões do banco, mas transações dos clientes com outrem. "Gabriel também é bastante articulado, de trato fácil e tem tido uma atuação de destaque na área jurídica", assinou embaixo Luciano Amaro, professor da Universidade Mackenzie e o advogado do Itaú que recebeu a primeira versão da minuta via e-mail na quinta-feira. Tinham quatro dias para mergulhar no assunto. Em 18 páginas, Gabriel estruturou a essência da transação, que envolveu, entre outros itens, a definição dos presidentes, dos aspectos relacionados às demonstrações contábeis, do exercício de controle acionário e da auditoria independente. "Ele fez um contrato de fusão dos velhos tempos, baseado nos princípios", classifica Claudia Politanski, diretora executiva responsável pela assessoria jurídica do Unibanco. Por influência da meticulosidade americana, esses instrumentos tendem a ser mais detalhados, ainda mais quando há pouca firmeza nos propósitos de cada um, o que não parecia ser o caso. "Não fosse por motivos legais, não precisaríamos de contrato, tamanha a cooperação entre as duas partes", diz Gabriel. A assinatura se fez no domingo, e na segunda-feira os funcionários dos dois bancos e todo o País souberam do negócio que somava ativos de R$ 575 bilhões e ultrapassava no vácuo a liderança do Banco do Brasil, estimada em R$ 450 bi. Também foi na segunda que Gabriel Jorge Ferreira ganhou o negrito em colunas sociais e em entrevistas. O "advogado da transação", aquele que apertou o gatilho contratual de um negócio inédito no Hemisfério Sul, veio à tona como o nome de consenso mais rápido do Oeste. Era Gabriel, o articulador. Economia doméstica O advogado, hoje com 73 anos, demorou um pouco para oficializar-se como tal. Entrou já casado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, aos 27, mas foi precoce na faculdade de economia doméstica. Com 9 anos, ouviu da mãe, d. Laudevina, por que não arrumava um emprego. O menino foi até a quitanda, onde recebeu uma cesta com bananas-nanicas. Vendeu tudo na quarta casa e voltou radiante com as moedas na mão. O emprego durou uma semana. "Achei que estava ganhando pouco", explica Gabriel. Resolveu montar o próprio negócio e virou engraxate. Quando voltava, d. Laudevina invariavelmente o saudava com a seguinte questão: "Avez-vous beaucoup d''argent?" Não era tão beaucoup assim, mas fazia diferença em casa. Nascido em Jaborandi, no norte paulista - cidade em que dois candidatos a prefeito na época empataram em 500 votos a 500 -, Gabriel tinha mais sete irmãos, a mãe que sabia francês por uma circunstância e o pai que corria as fazendas numa moto NSU com máquinas de costura na garupa. O ganha-pão paterno recebeu um improvement com a compra de uma moto Royal Enfield já em Barretos, improvement que ainda assim não assegurava o sustento tranqüilo. De engraxate, Gabriel se alçou a entregador de O Diário de Barretos, plantador de grama no Estádio Fortaleza, caixeiro com direito à faxina numa loja de calçados e balconista com direito à leitura dos volumes numa livraria. No paralelo, estudava muito e ia ao cinema tanto quanto. Lembra-se claramente de Amar Foi minha Ruína, de John M. Stahl, o filme que inaugurou o Cine Santo Antônio em 1946, com a bela Gene Tierney no papel da mulher doente de amor pelo marido. Uma tragédia fenomenal, cuja cópia para o cinema ele pretende conseguir até a reabilitação do Cine Santo Antônio, hoje Cine Barretos, para a qual Gabriel contribuiu por meio de uma vaquinha entre os amigos banqueiros. A série A Deusa de Joba, com Clyde Beatty, Gabriel não assistiu até o fim por castigo da mãe, em função de uma molecagem dele. De Flash Gordon, com o campeão olímpico Buster Crabbe, viu todos os capítulos. Gabriel era obcecado por Hollywood. O pai, em contrapartida, ficou foragido um mês num fazenda por ser do Partido Comunista. Um investigador vigiava dia e noite a casa dos Ferreiras, onde um dos filhos, Luís Carlos, dedurava ainda mais o vínculo ideológico com Prestes. Só agüentaram a carestia por causa do crédito empresarial ampliado, vulgo caderneta, na padaria e no armazém. No colegial da escola do Estado, Gabriel se envolveu com o teatro, fazendo o papel de um oculista que consultaria um cego em Trevas que Libertam. Na Escola Técnica de Comércio, encantou-se com o universo jurídico. Em discurso na formatura dessa última turma, recorreu a Monteiro Lobato. Também paraninfo de um grupo de contabilistas, o autor de O Escândalo do Petróleo advertiu sobre a flexibilidade da nova profissão. Argumentou sobre a diferença ampla entre fazer a escrita e preparar a escrita. Da primeira expressão, deduz-se a atuação honesta e correta, que leva a um degrau de cada vez na ascensão social. Da segunda, o desvio mesquinho visando a ocupar o posto mais alto de uma só tacada. "Um dia, no entanto", escreveu Gabriel, "um salto mal dado converter-se-á em um passo em falso, e então como Ícaro, cujas asas improvisadas com cera derreteram-se ao calor do sol, precipitar-se-ão e dificilmente recobrarão a estabilidade social." Gabriel considera o texto de Monteiro Lobato atualíssimo, a ponto de encará-lo como uma de suas bandeiras na CNF, onde prega a modernização da contabilidade brasileira. "A falta de transparência é muito grande." Já ciente de que o mundo era maior que uma avenida, Gabriel chegou a São Paulo em 1957 com a ilusão de que emprego na capital dava que nem mato. Demorou um pouco para se colocar no mercado. Na consultoria contábil e societária da Consyl, acabou por prestar serviços para a Deltec, empresa pioneira no lançamento de ações, para a qual se transfere depois de um ano. Quando surge o aceite cambial como forma de captação de recursos, em 1959, Gabriel passa a participar das discussões sobre a legislação emergente a respeito dos mercados financeiro, de capitais e societário. Também marca presença nos congressos de bancos, rotineiros nas décadas de 60 e 70, atuando ao lado de Lázaro Brandão, Olavo Setubal e Roberto Bornhausen. A primeira fusão de que participou aglutinou a Deltec, o Ibec (do grupo Rockfeller) e o Banco Moreira Salles a fim de criar o Banco de Investimento do Brasil (BIB). Viriam outras. Em 1975, quando somavam 15 instituições, a denominação passou a ser Unibanco. Por 30 anos, Gabriel foi consultor jurídico do banqueiro Walther Moreira Salles, "um homem com uma vocação associativa muito grande". Aprendeu com ele, e com o jurista José Luiz Bulhões Pedreira, que o papel do advogado é tirar os espinhos, as arestas, para que as partes envolvidas em um contrato se aproximem de forma muito harmônica, muito confortável, a fim de concluir uma transação. "O advogado é o viabilizador de negócios", define. Gabriel toma mais um copo d?água. Estamos no 22º andar do edifício-sede do Unibanco, em São Paulo, numa sala de mesa quadrada, em que suas mãos impacientes já levantaram e recolocaram no lugar uma profusão de vezes o jogo americano à frente. Gabriel então busca na própria pasta o Pocket World in Figures, guia da The Economist que traz um ranking de mais de 200 categorias envolvendo 180 países. Abre na página dos maiores bancos segundo o patrimônio líquido. O Brasil não consta. "Ficava triste de não ver banco brasileiro aqui." Falta pouco para ampliar esse horizonte. Gabriel, aliás, já vê filmes em 3D com os netos. SEGUNDA, 4 DE NOVEMBRO Casamento bilionário Itaú e Unibanco anunciam a fusão que cria o maior banco do Hemisfério Sul e o 17º do mundo por valores de mercado. Ambos terão 50% cada do controle da holding que comandará as operações. Os ativos totais da instituição alcançam R$ 575 bilhões. DO PARTIDÃO O pai ficou foragido. Só agüentaram a carestia por causa do crédito ampliado, vulgo caderneta SONHADOR Chegou a São Paulo em 1957, com a idéia de que emprego dava que nem mato CINÉFILO Viu todos os 'Flash Gordon' e agora se aventura nas películas em 3D

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.