Gênio desesperado

Se o riso é prova da existência de Deus, então o suicídio de Robin Williams prova, para muitos, que Deus está morto

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colunista convidado
Por Lee Siegel
Atualização:
FILE Foto: RICHARD PERRY/NYT

A cultura muda com tanta rapidez nos dias atuais que o que há pouco eram trivialidades sobre a natureza humana hoje surpreendem muita gente como insights originais. A revelação de que Robin Williams, que se enforcou na semana passada, era um gênio cômico com um coração desesperado não fez a maioria das pessoas lembrar aquele velho truísmo sobre as lágrimas de um palhaço. Aqui nos Estados Unidos, ao menos, o fato de que um homem tão divertido pudesse ser também um homem tão triste provocou uma comoção geral.

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A bem da verdade, porém, a morte súbita de Williams foi um choque. Durante décadas, espectadores fugiam dos próprios desesperos para as transfigurações da realidade brilhantemente divertidas de Williams. O riso é muitas coisas – uma delas, claro, a catarse que aplaca nossa própria dor. A revelação de que esse homem engraçado estava desesperado e no fim se rendeu ao desespero chocou profundamente muitas pessoas. Se, como alguém já disse, o riso é prova da existência de Deus, então o suicídio de Robin Williams teve para muitos o efeito de provar que Deus está morto.

Isso parece um exagero de proporções operísticas, mas não creio que haja, ou que tenha havido – não desde o Vagabundo de Chaplin, ao menos – um comediante que tenha expressado tão poderosamente a alma da vida ordinária. Pessoas que o conheceram agora trouxeram lembranças de Williams, uma delas a de que, quando não estava atuando – o que ele sempre parecia estar, mesmo fora da tela e do palco –, ele falava com uma voz baixa e trêmula que parecia à beira das lágrimas. Williams foi muitas vezes acusado de ser um ator sentimental, mas o que tornou o Vagabundo imortal foi precisamente a aura de sentimentalismo que Chaplin emprestou a seu personagem. Alguém já definiu sentimentalismo como a emoção que é excessiva para a ocasião. Para a maioria das pessoas, contudo, a real natureza da vida, o fato de toda vida terminar em doença e morte, e de a alegria ser limitada por inevitável tristeza significa que nenhuma emoção pode ser excessiva nessa particular ocasião conhecida pelo nome de existência humana. As pessoas sofisticadas e prósperas, protegidas como são das estocadas da vida, vivem numa aceitação mais ou menos fácil das tristezas. Mas a grande massa de seres humanos não tem nada que a proteja das agruras. Para ela, a resposta sentimental é uma resposta realista.

Williams parecia incapaz de aceitar os parâmetros dolorosos da vida. Segundo alguns que lhe eram próximos, a constatação da mortalidade começou a pesar cada vez mais no comediante e ator de 63 anos. Ele parecia não superar a morte do amigo e inspirador Jonathan Winters, comediante que morreu em abril aos 87 anos. Não surpreende saber quanto era generoso com seu tempo e seu dinheiro, contribuindo para causas tão variadas como a pobreza e a aids pediátrica. Certa vez, passou um dia inteiro com uma criança que estava morrendo e pedira para conhecê-lo.

A religião abrange o arco todo da existência, olhando de maneira resoluta a tragédia da vida e respondendo a ela ora com um saber consolador ora com sentimentalismo, a depender de nosso ponto de vista. Williams tinha uma personalidade religiosa. Ele foi atraído repetidas vezes para retratar personagens em histórias que cobriam toda uma existência, às vezes o arco da vida de toda uma civilização. Em seu primeiro grande papel dramático, T. S. Garp em O Mundo Segundo Garp, ele faz um homem da mocidade à idade adulta; e em seus minutos finais, depois de ser mortalmente baleado por alguém, Garp se lembra de ter sido atirado no ar pela mãe quando era bebê enquanto era transportado de helicóptero para um hospital. Do nascimento à morte e de novo ao nascimento. Esse era o território artístico e a obsessão pessoal de Williams.

Outros papéis parecidos se seguiram, alguns realistas, alguns fantásticos. Williams foi Hector em Segredos da Vida, um homem que é reencarnado em uma época histórica após outra e passa por todas as estações da vida. No lacrimoso ficção científica O Homem Bicentenário, ele faz um robô que vive para assistir à morte de incontáveis pessoas pelas quais se afeiçoou. Mesmo num papel mais realista como Adrian Cronauer, o frenético e desafiador DJ em Bom Dia, Vietnã, ele parece um pequeno deus tragicômico que preside e comenta com cáustico pesar os ciclos de vida terminais dos soldados que o cercam.

Para mim, o papel definidor de Williams, e aquele que melhor explica sua essência como artista, talvez até como pessoa, foi o de Tommy Wilhelm na versão cinematográfica de 1986 da excelente novela de Saul Bellow Aproveita o Dia. Foi apenas o quinto filme de Williams, e ele o fez quando estava com 33 anos. Vindo depois de uma comédia, Os Sobreviventes, e uma comédia dramática, Um Russo em Nova York, fazer Tommy Wilhelm foi uma mudança estranha para Williams em sua carreira. Apesar do corajoso desempenho dramático como Garp, ele ainda era visto como comediante e ator cômico. Na mente do público, continuava sendo Mork, o benquisto extraterrestre frenético que interpretou de 1978 a 1982 na bem-sucedida série de televisão Mork and Mindy. Tommy Wilhelm foi uma história completamente diferente.

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O Wilhelm de Bellow é um ator fracassado de meia-idade que está enfrentando um divórcio e uma crise financeira, sem ter quase nada em seu nome. Ele é, aos olhos da sociedade, um perdedor e um fracassado. Mas Bellow também compara explicitamente Wilhelm a Buda e a Cristo. Wilhelm é a investigação de Bellow de qual poderia ser o destino de um homem que decide viver, numa sociedade capitalista, guiado por seus sentimentos e não por seu intelecto racional. Pois Wilhelm é um homem bom, que numa sociedade diferente poderia ser considerado um sucesso por sua humanidade. Mas numa América capitalista essa humanidade, profundidade de sentimentos e empatia de nada servem. Ele é um fracasso absoluto.

Williams interpreta Wilhelm com um desespero cômico tão natural que se tem a impressão de que ele quase não está interpretando. É um tour de force epifânico. Sente-se que o próprio Wilhelm é um homem antieconômico, o homem que vive guiado por seus sentimentos, suas emoções, e não pelo intelecto calculista. Não sei o que o próprio Williams achava do filme, ou de seu desempenho nele, mas três anos depois, em Sociedade dos Poetas Mortos, ele faz um professor de inglês iconoclasta numa escola particular de elite, que exorta constantemente seus alunos a “aproveitarem o dia”. Me parece que seu desempenho como Tommy Wilhelm era afinado aos sentimentos de Williams. E me parece que alguém que vive se sentindo só acabará tendo um final infeliz.

Mas a universalidade do sentimento, ao contrário dos efeitos divisores do intelecto – o intelecto discrimina, calcula, individualiza; a emoção cega e nivela – é uma premissa fundamental da vida democrática. O sentimento universal era o evangelho de Walt Whitman. Criatura extremamente sensível, Williams foi o homem democrático por excelência. A vitalidade compulsiva com que entrava em qualquer tipo social ilustrava isso. Em uma apresentação de stand-up ele podia passar de um imigrante porto-riquenho a um aristocrata britânico em um nanossegundo. Era extraordinário – como observar o demônio de Sócrates em ação. A necessidade passional que Williams tinha de retratar dramaticamente todo o espectro da vida biológica de um indivíduo – como se com isso ele pudesse derrotar a morte – encontrou seu corolário em sua necessidade passional de se transformar em todos que ele encontrava, qualquer que fosse sua origem étnica ou social – como se com isso pudesse vencer sua solitária e irreversível finitude humana.

Williams era o indivíduo empático por excelência, e, talvez tenha sido a empatia que o matou e não seu desespero com o diagnóstico recente de Parkinson. William James escreveu que se alguém pudesse, mesmo por um segundo, ficar consciente de tudo que estivesse se passando ao redor, sua cabeça explodiria. Saul Bellow estava cobrindo um terreno parecido quando, no começo de seu romance As Aventuras de Augie March, escreveu que “todo mundo sabe que não existe precisão ou apuro na supressão; se você corta uma coisa, acaba amputando o que está ao lado”. Williams parecia compelido a permitir que tudo que se passava ao redor entrasse na sua consciência. E parecia recusar-se a cortar qualquer impulso por temer que isso inibisse um impulso ao lado.

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Ele era desamparadamente vicário. Sua personificação de uma mulher em Uma Babá quase Perfeita tem um poder dionisíaco, quase ritualístico. É o tipo de coisa que se esperaria de um xamã em sociedades primitivas. Se interpretar Tommy Wilhelm, ou Parry, um homem sem-lar possivelmente psicótico em O Pescador de Ilusões preencheu a necessidade de Williams de se mover verticalmente pelas classes sociais da sociedade, fazer Euphegenia Doubtfire foi a expressão de sua necessidade de se mover horizontalmente por gêneros – em suas rotinas de stand-up, ele manteve o movimento horizontal e habitou quase toda raça, religião e tipo étnico existente.

Euphegenia Doubtfire, nome ficcional da personagem, poderia perfeitamente ter sido o verdadeiro nome do espírito de Williams. Em grego antigo, o primeiro nome poderia significar algo como “pessoa boa, de estirpe forte”. Como a maioria das pessoas intimamente ligadas ao riso, Williams conhecia as agruras da vida e por isso valorizava a importância da bondade, da gentileza. E como todos os gênios, era simultaneamente roído por dúvidas e exaltado com seu talento. Na verdade, há apenas duas coisas que se pode fazer quando se nasce um Robin Williams – isto é, se você vem à Terra não como um humano entre humanos, mas como um extraterrestre nunca à vontade com os limites da mortalidade. Pode-se rir ou pode-se chorar, e com sorte e empenho, pode-se fazer as duas coisas ao mesmo tempo; e depois fazer disso a obra de sua vida. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

Lee Siegel, escritor e crítico cultural americano, é colaborador do NYT, The New Yorker e The Nation. Autor de Você Está Falando Sério? (Panda Books)

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